Enquanto comércio teve baixa, tráfico de drogas lucrou e foi 'vencedor da pandemia', diz analista

© AP Photo / Aaron FavilaUm membro da Agência de Repressão às Drogas das Filipinas, PDEA, arranja pacotes de Cloridrato de Metanfetamina, também conhecido como "Shabu", que encontraram escondido dentro de um cilindro de aço em uma das maiores remessas de drogas em Manila, Filipinas, na terça-feira, 7 de agosto de 2018
Um membro da Agência de Repressão às Drogas das Filipinas, PDEA, arranja pacotes de Cloridrato de Metanfetamina, também conhecido como Shabu, que encontraram escondido dentro de um cilindro de aço em uma das maiores remessas de drogas em Manila, Filipinas, na terça-feira, 7 de agosto de 2018 - Sputnik Brasil, 1920, 01.07.2021
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No final do mês de junho, a ONU divulgou seu Relatório Mundial sobre Drogas 2021, o qual apontou um aumento global no consumo de entorpecentes. A Sputnik Brasil conversou com dois especialistas para entender melhor esse quadro.

De acordo com o Relatório Mundial sobre Drogas 2021, divulgado no dia 24 de junho pelo escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC, na sigla em inglês), cerca de 275 milhões de pessoas usaram entorpecentes em todo o mundo em 2020.

Ainda segundo o documento, nas últimas estimativas globais, cerca de 5,5% da população com idade entre 15 e 64 anos usou drogas pelo menos uma vez no ano passado, enquanto 36,3 milhões de pessoas, ou 13% do número total de pessoas que usam drogas, sofrem de transtornos pelo uso das mesmas.

Entre 2010-2019, o número de pessoas que usaram entorpecentes aumentou 22%, devido em parte ao crescimento da população global. As projeções atuais sugerem um aumento de 11% no número de pessoas que usarão drogas globalmente até 2030.

Para entender melhor esses dados, o porquê do aumento global do uso de entorpecentes e como a pandemia ajudou nesse contexto, a Sputnik Brasil ouviu dois especialistas sobre o assunto: o professor do curso de Relações Internacionais da PUC-SP, Paulo Pereira, e Leonardo Chilio Jordão, doutorando e pesquisador do programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP - UNICAMP - PUC-SP) e membro do Núcleo de Estudos Transnacionais da Segurança (NETS).

Pandemia e tráfico de drogas

O novo relatório mostra que o mercado de drogas retomou rapidamente suas operações após uma ruptura inicial no início da pandemia, uma explosão que desencadeou ou acelerou certas dinâmicas de tráfico pré-existentes no mercado. A resiliência desses mercados teria demonstrado, mais uma vez, a capacidade dos traficantes de se adaptarem rapidamente a ambientes e circunstâncias alterados.

Para Leonardo Jordão esse fato não foi muito chocante, visto que esse tipo de mercado já requer uma inata adaptabilidade para acontecer pelo contexto ilegal, mas o mesmo ressalta que o que realmente impressionou foi a velocidade com que essa adaptação ocorreu.

O pesquisador conta que algumas análises apontaram que "o tráfico e a criminalidade foram os vencedores da pandemia, porque enquanto alguns setores comerciais começaram a cair na lucratividade, para o tráfico só aumentou esse lucro".

Dentro dessas adaptabilidades utilizadas pelos traficantes para ultrapassar o período pandêmico, Jordão cita um maior uso da deep web, novas modalidades de transporte de carga e um maior número de cargas ilícitas em uma só modalidade. Entretanto, o pesquisador acha que ainda é cedo para dizer se essas tendências serão perenes pós-pandemia ou não.

"O tráfico de drogas é um mercado, um tipo de economia, um tipo de prática muito maleável, muito adaptável, que depende de várias conexões associadas, então [saber se essas práticas vão continuar] é muito uma resposta ao contexto", disse o especialista.

© AP Photo / David GoldmanO norte-americano Joshua Messer, dias após ter uma overdose. Messer disse que a pandemia criou um "círculo de nada", que o levou a usar mais drogas, junto com outras pessoas que ele conhece, Virgínia, EUA, 16 de março de 2021
Enquanto comércio teve baixa, tráfico de drogas lucrou e foi 'vencedor da pandemia', diz analista - Sputnik Brasil, 1920, 01.07.2021
O norte-americano Joshua Messer, dias após ter uma overdose. Messer disse que a pandemia criou um "círculo de nada", que o levou a usar mais drogas, junto com outras pessoas que ele conhece, Virgínia, EUA, 16 de março de 2021

No entanto, o professor Paulo Pereira acredita que a pandemia nos fez estabelecer uma série de novas medidas e hábitos que serão difíceis de "voltarem ao que era" e a economia da droga passaria pelo mesmo processo.

Uma vez essa "adaptalidade" iniciada, ela não teria como voltar atrás, e também cita como exemplo o aumento do uso da Internet pelo tráfico, pois "o ambiente virtual já valoriza o anonimato, valoriza as transações que são escondidas", então esse seria um bom cenário para pratica comercial das drogas e seria difícil o mesmo sofrer uma desaceleração ou retroceder.

Deep web

A deep web é uma parte da Internet que não é indexada pelos mecanismos de busca, como o Google, por exemplo, portanto, fica oculta ao grande público, sendo conhecida como "a Internet profunda". 

Leonardo Jordão conta que há bastante tempo tanto a Internet "comum" quanto a deep web são utilizadas pelo tráfico de drogas, e que talvez o que esteja mais em voga é um aumento no acesso à deep web para essa finalidade. Para o pesquisador a ferramenta é mais utilizada agora pelo fato de as pessoas estarem em casa pela pandemia, mas de maneira geral "não afeta a natureza ilícita, a natureza anônima do tráfico de drogas".

Perguntado sobre possíveis regulamentações que a comunidade internacional poderia aplicar para que haja um maior controle do uso da deep web nas transações de entorpecentes, o analista acredita que é preciso mudar a abordagem, uma vez que "a deep web é mais uma ferramenta do que a permitidora da existência do tráfico de drogas".

"Se a gente começar a trocar a abordagem em relação às drogas e começar a tratá-la como uma questão de saúde pública, a questão da deep web acaba se resolvendo por consequência. Mas claro, a questão específica desse tipo de Internet em relação ao tráfico."

© Sputnik / Aleksei Malgavko / Acessar o banco de imagensEm uma parte do ambiente conhecido como deep web redes de comunicação anônima podem ser acessadas com facilidade e acabam sendo usadas para circular conteúdo ilegal
Enquanto comércio teve baixa, tráfico de drogas lucrou e foi 'vencedor da pandemia', diz analista - Sputnik Brasil, 1920, 01.07.2021
Em uma parte do ambiente conhecido como deep web redes de comunicação anônima podem ser acessadas com facilidade e acabam sendo usadas para circular conteúdo ilegal

Aumento do uso de drogas

O relatório também apontou para um aumento mundial do uso de drogas e ainda fez uma perspectiva para uma elevação desse número em 2030.

Na visão de Leonardo Jordão, esse aumento se deve ao fato de que as políticas adotadas para lidar com a questão foram políticas equivocadas, é que é necessária uma mudança no enfoque dessas medidas, ou seja, ao invés de utilizar violência repressiva para tentar barrar o uso de drogas, é preciso olhar para questão como um tópico de saúde pública.

O especialista também ressalta que "os países que começam a tratar a descriminalização de algumas drogas [...] estão mostrando alguns avanços promissores".

Ainda sobre o aumento do consumo, Paulo Pereira diz ser importante pontuar o fato de que esse aumento não foi observado em todos os tipos de drogas, mas em algumas em particular, uma vez que a pandemia criou um contexto específico para o seu uso. As drogas ligadas às festas, a uma sensação de euforia, mais psicodélicas como MDMA e o LSD, apresentaram oscilações para baixo na sua procura.

Já a cannabis teve um aumento, o que faria sentido, já que seus efeitos podem ser aplicados no contexto doméstico.

© Foto / Pixabay / Mike Wall Drogas que exigem um ambiente mais festivo e empolgante com multidões apresentaram declínio no seu uso durante pandemia diante das restrições e lockdowns que impossibilitaram os eventos
Enquanto comércio teve baixa, tráfico de drogas lucrou e foi 'vencedor da pandemia', diz analista - Sputnik Brasil, 1920, 01.07.2021
Drogas que exigem um ambiente mais festivo e empolgante com multidões apresentaram declínio no seu uso durante pandemia diante das restrições e lockdowns que impossibilitaram os eventos

Um problema transnacional ou nacional?

A questão das drogas é um problema mundial e sempre está presente com relevância seja na pasta da Saúde ou da Segurança em diversos governos, mas seria esse um problema transnacional ou nacional? Para Leonardo Jordão, a questão é ao mesmo tempo transnacional e nacional, pois os dois se "retroalimentam".

Segundo Jordão, a demanda global faz com que diversos atores, tanto da esfera legal quanto da ilegal, se movimentem para que a droga possa chegar a lugares mais distantes, sem muita oferta, e somente através da transnacionalidade vivida por esses atores é possível que esse percurso aconteça.

Ao mesmo tempo, a questão também é nacional, pois muitos problemas decorrentes do tráfico de drogas acontecem devido às políticas públicas que são respostas nacionais.

Coca

No relatório foi apontado que os efeitos econômicos da pandemia podem levar à precarização da situação da população camponesa na América Latina, o que poderia aumentar a produção de coca, revertendo a queda de 5% neste plantio.

Paulo Pereira explica que diante da crise econômica, as pessoas precisam achar alternativas para gerar renda, e a plantação de coca nas regiões mais interioranas poderia ser um "atrativo" para burlar esse problema econômico.

"Há um atrativo para que camponeses usem o plantio da folha de coca como um substituto da produção de outras commodities agrícolas que não têm o mesmo valor. Se você planta feijão não gera a mesma renda se você plantar folha de coca."

Por outro lado, o professor também salienta o fato de que o plantio da coca tem chance certa de ser comercializado a partir do momento que é comprado pelo tráfico de drogas, o que pode não acontecer com a plantação de outras commodities que dependem de vários fatores para ter sua venda acertada.

Como o próprio relatório apontou, houve crescimento no uso de drogas durante a pandemia, então seria um mercado certeiro.

© AP Photo / Juan KaritaVendedora de coca com seu saco de folhas enquanto espera por clientes dentro do mercado legal de folhas de coca em La Paz, Bolívia. A coca é a base da cocaína, mas também é uma planta sagrada entre os nativos dos Andes (foto de arquivo)
Enquanto comércio teve baixa, tráfico de drogas lucrou e foi 'vencedor da pandemia', diz analista - Sputnik Brasil, 1920, 01.07.2021
Vendedora de coca com seu saco de folhas enquanto espera por clientes dentro do mercado legal de folhas de coca em La Paz, Bolívia. A coca é a base da cocaína, mas também é uma planta sagrada entre os nativos dos Andes (foto de arquivo)

Ao mesmo tempo, em relação à planta, Leonardo Jordão enfatiza que é preciso desmistificar o plantio da folha de coca relacionado à cocaína.

O plantio faz parte de uma cultura secular de povos, principalmente os da América do Sul, e que para folha chegar à forma da droga, passa por diversos processos químicos que a potencializam e não estão presentes na planta naturalmente, portanto, seu plantio cultural é diferente do seu uso para consumo como entorpecente.

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