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Por que a Etiópia enfrenta a mais grave crise humanitária neste momento?

© AP Photo / Mulugeta AyeneMenino corre por rua de Adis Abeba, capital da Etiópia, em 11 de setembro de 2020
Menino corre por rua de Adis Abeba, capital da Etiópia, em 11 de setembro de 2020 - Sputnik Brasil, 1920, 14.10.2022
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O que está acontecendo na Etiópia? Analista de política africana explica as razões do conflito envolvendo o Estado etíope e a região do Tigré, uma crise humanitária que deixa um rastro de fome e uma guerra civil longe do fim.
Cerca de 9 milhões de pessoas tiveram que deixar suas casas para fugir da violência e dos conflitos na Etiópia. Como se não bastasse a guerra, o país é assolado por secas e inundações, surtos de doenças devido à falta de água e saneamento nas comunidades mais deslocadas e falta de medicamentos e energia.
A Organização das Nações Unidas (ONU) estima que 5,2 milhões de pessoas enfrentam "fome severa" na região, que, em função da geopolítica local, convivem com inúmeras dificuldades para receber ajuda humanitária. A guerra civil etíope foi deflagrada em 2020, e, após dois anos de conflito, a paz segue distante da realidade.
Franco Alencastro, mestre em relações internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e pesquisador voluntário no Núcleo de Avaliação da Conjuntura da Escola de Guerra Naval, analisa a situação da nação que enfrenta a maior crise humanitária dos dias atuais. Para ele, inclusive, o conflito sequer pode ser colocado em um ranking, pois faltam dados reais do tamanho do flagelo social no país.
Mundioka #110 - Sputnik Brasil, 1920, 14.10.2022
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O diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom, apontou que a crise humanitária no Tigré foi ofuscada pelo conflito entre Rússia e Ucrânia, que, segundo ele, é menos urgente que a situação etíope. Adhanom questionou a apatia dos chefes de Estado em torno do assunto.

Onde tudo começou?

De 1991 a 2019, a Etiópia foi governada pela Frente Democrática Revolucionária dos Povos Etíopes (FDRPE), coalizão em que cada partido representava diferentes grupos étnicos. A Frente Popular de Libertação do Tigré (FPLT) tradicionalmente tinha o papel de líder nessa coalizão. Ao chegar ao poder em 2018, o primeiro-ministro Abiy Ahmed alterou a composição do governo, extinguindo a FDRPE.
A coalizão política de grupos étnicos foi substituída pelo Partido da Prosperidade (PP). A Etiópia enfrenta a situação de crise política e humanitária desde novembro de 2020, quando a região do Tigré conduziu eleições regionais, contrariando a ordem do governo da capital, Adis Abeba, de adiar o pleito por conta da pandemia de COVID-19. A FPLT se recusou a integrar o governo por sentir que isso diminuiria o seu poder, aponta Alencastro.

"Eu acho que é complexo estipular um ranking para crises internacionais. A crise no Tigré não tem dados tão transparentes assim a respeito da gravidade da situação. E o motivo pelo qual não há dados é que o Estado etíope está realizando um bloqueio do Tigré. Por isso também existe uma dificuldade para que chegue ajuda humanitária à região", comentou.


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Ajuda externa e paz

Diante da gravidade humanitária deflagrada pelos confrontos da guerra civil etíope, alguns países, como o Sudão, tentaram ajudar e promover soluções. Entretanto, como apontou o especialista, "a Etiópia quer que o conflito seja mediado pela União Africana, cuja sede fica na Etiópia. Então podemos presumir que existe uma afinidade política".

"A mais recente tentativa foi proposta pelo antigo presidente do Quênia, que já desistiu de negociar os tratados de paz", disse.

No momento, ele avalia que é muito difícil falar de um horizonte de paz. Isso acontece, segundo ele, porque a Etiópia "viveu um estado de conflito com a Eritreia em disputas fronteiriças. A Eritreia conseguiu uma mediação da ONU, e a Etiópia se recusou a aceitar essa proposta. O resultado foram 20 anos de 'quase guerra'. Então, se não houver paz, a situação atual [com o Tigré] pode se estender por muito tempo".

A questão da Eritreia

Em 4 de novembro de 2021, começou o enfrentamento militar entre as forças da FPLT e as Forças Armadas etíopes, com ataques no entorno da cidade de Mekele, capital da província do Tigré.
A Eritreia e a Etiópia não mantiveram relações durante duas décadas, após a guerra entre os dois países, de 1998 a 2000. Como a Etiópia não reconhece o resultado da arbitragem promovida pela ONU, as partes vivem uma situação de antagonismo, o que é agravado pelo fato de o Tigré ficar perto da fronteira com a Eritreia.
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Segundo Franco Alencastro, com essa proximidade, "as ligações entre os governos da Etiópia e da Eritreia dão frutos negativos" agora. A Eritreia realizou uma intervenção com suas forças na região do Tigré, com vários problemas, como denúncias de possíveis abusos dos direitos humanos e de ataques a civis.
Segundo informações recentes, algumas tropas eritreias ainda permaneceriam na Etiópia. Fala-se hoje da presença de militares da Somália também, que foram recrutados em sistema de mercenários pela Eritreia para substituir a parte do contingente militar que deixara o país, segundo o especialista.

Separação do Tigré?

Em novembro do ano passado, o governo da Etiópia declarou estado de emergência nacional, após forças do norte da província terem conseguido conquistar territórios. A FPLT declarou ter tomado duas cidades no sul da região e informou estar marchando para a capital do país. A repercussão desse episódio levantou a possibilidade de o Tigré conseguir uma espécie de independência ou realizar a sua separação da Etiópia.
Para Alencastro, essa hipótese, embora ocasionalmente levantada, é "muito improvável". Segundo o especialista, o Tigré não conseguirá fazer isso por duas razões:

"[Uma razão é o Tigré ser] [...] uma região muito pequena, que ficaria isolada, sem acesso ao mar e espremida entre a Etiópia e a Eritreia. A outra razão é que o Tigré não quer separatismo, mas recuperar sua posição de preponderância na política etíope", disse.

Etiópia: país da fome

Distante de uma solução que agrade a ambos os lados, a Etiópia e a região do Tigré seguem com agressões mútuas, como um ataque aéreo da Força Aérea da Etiópia contra um jardim de infância em Mekele em agosto. Funcionários de um hospital local confirmaram pelo menos 13 mortos.
O governo da Etiópia não se posicionou sobre o ataque, mas divulgou um comunicado, em sua conta oficial no Twitter, no qual afirma que os separatistas da FPLT "não conseguem viver sem guerra e estão fechando todas as portas abertas em direção à paz".
O documento afirma que o governo etíope "aprovou uma resolução para resolver o problema no norte do país pacificamente". "Contudo a FPLT, que não consegue viver sem guerra, está sacrificando a juventude do Tigré e perpetrando ataques em múltiplas áreas. Nossas forças de defesa estão cuidadosamente defendendo a opção de paz do governo", prossegue.
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Enquanto isso, a fome e a insegurança alimentar são um problema crescente. As regiões de Afar, Oromia, Nações, Nacionalidades e Povos do Sul (SNNPR, na sigla em inglês) e Somali estão passando por uma grave seca devido à falta de chuvas por quatro temporadas consecutivas. Os poços de água secaram e milhares de cabeças de gado morreram, provocando um deslocamento em massa.
O índice de desnutrição na Etiópia está aumentando de forma alarmante devido à seca. Em quatro regiões etíopes, estima-se que cerca de 600 mil crianças precisarão de tratamento para a desnutrição aguda até o fim do ano. Além disso, o efeito cascata das sanções ocidentais contra a Rússia diante do conflito na Ucrânia provoca o aumento nos preços dos combustíveis e reduz as importações de trigo. Vale frisar que a Etiópia importa 67% de seu trigo da Rússia e da Ucrânia.

Para além desses problemas, como apontou Alencastro, "a Etiópia tem uma questão agrícola complexa. Desde a década de 1980, existem problemas grandes com seca e fome, devido ao agravamento de questões climáticas e [de problemas com a] distribuição de terra, que não permite venda e compra de terras no norte do país, por exemplo. Isso criou uma produção agrícola muito prejudicada e movida pelo interesse de alguns grupos. Qualquer tentativa de reforma pode gerar inimizades importantes".

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