'COVID-jihad' e 'imãs virtuais': quais os impactos da pandemia no Oriente Médio?

© AFP 2023 / Said Khatib Membro do grupo palestino Jihad Islâmica usa máscara protetora nas ruas de Rafah, na Faixa de Gaza, 26 de março de 2020
Membro do grupo palestino Jihad Islâmica usa máscara protetora nas ruas de Rafah, na Faixa de Gaza, 26 de março de 2020 - Sputnik Brasil
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A pandemia de COVID-19 veio para colocar lenha na fogueira do Oriente Médio, região que já enfrenta conflitos, sectarismo e crise econômica. Como a região está lidando com a pandemia e quais as novas tendências catalisadas pela quarentena?

O Oriente Médio e o Norte da África, região de maioria muçulmana e muitas riquezas naturais, enfrenta há séculos disputas internas e interferência estrangeira.

Nesta segunda-feira (14), especialistas do Conselho de Relações Internacionais da Rússia (RSMD, na sigla em russo) reuniram-se para debater qual o impacto da pandemia nessa tumultuada região.

"As esperanças que tínhamos há alguns meses de que o Oriente Médio poderia ser poupado da epidemia do novo coronavírus não se concretizaram", disse Andrei Kortunov, diretor-geral do RSMD.

"As estatísticas [da região] não são muito boas: Arábia Saudita e Turquia têm mais de 200 mil casos, enquanto Qatar, Egito e Iraque já ultrapassam os 100 mil", lamentou Kortunov. "A única boa notícia é que o nível de mortalidade ainda não é muito alto."

Para o diretor do centro de estudos islâmicos da Escola Superior de Economia de Moscou, Gregory Lukyanov, as estatísticas regionais não refletem o real estado epidemiológico da região.

"Irã, Arábia Saudita, Qatar e Israel são os países da região com mais casos registrados, porque têm sistemas de estatísticas nacionais mais desenvolvidos e sistemas de saúde mais robustos", argumentou Lukyanov.

"A COVID-19 também prolifera na Líbia, na Síria ou no Iêmen, mas, em função dos conflitos militares, é impossível coletar dados estatísticos adequados nesses locais", disse Lukyanov.

© REUTERS / Khaled AbdullahGaroto sentado entre militantes houthis na cidade de Sanaa, Iêmen, 6 de julho de 2020
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Garoto sentado entre militantes houthis na cidade de Sanaa, Iêmen, 6 de julho de 2020

Existem alguns lados positivos, como por exemplo o fato de que "60% da população da região é jovem e, portanto, está fora do grupo de risco", lembrou o especialista da Escola Superior de Economia de Moscou Nikita Ganzha.

Além disso, alguns países, como a Arábia Saudita, "têm experiência de combate a infecções respiratórias virais, uma vez que combateram a Síndrome Respiratória do Oriente Médio (MERS)", em 2012, lembrou Ganzha.

No entanto, Kortunov assegura que a pandemia vai modificar essa região já convalescente em função da "crise econômica, queda no preço do petróleo, crise financeira no Líbano, nova rodada de sanções dos EUA na Síria e piora do conflito na Líbia".

Mais lenha na fogueira

Lukyanov aponta que "houve um aumento visível no sentimento anti-China na região" desde o início da pandemia.

Além de muitos acharem que o "vírus é fruto da China", a imagem de China se deteriora em função das dificuldades enfrentadas por Pequim no tratamento da minoria muçulmana uigur, na província de Xinjiang, lembrou Lukyanov.

Esse sentimento "deve ter impacto duradouro [...] principalmente na região do Norte da África", assegurou Lukyanov.

A especialista em relações internacionais no Norte da África da Escola Superior de Economia de Moscou Aleksandra Fokina confirma a tendência, mas diz que Pequim está reagindo:

"A China está em primeiro lugar no quesito de ajuda humanitária e treinamento de agentes de saúde [no Norte da África]. Isso é muito importante para a imagem da China", disse.

© AP Photo / Hadi MizbanMembros da Embaixada da China supervisionam chegada de ajuda humanitária ao Iraque, em Bagdá, 20 de abril de 2020
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Membros da Embaixada da China supervisionam chegada de ajuda humanitária ao Iraque, em Bagdá, 20 de abril de 2020

Outro elemento que tomou a região durante a quarentena foi a propagação de "imãs digitais", ou teólogos da Internet.

"O papel social dos teólogos da Internet, ou 'imãs digitais', chegou a níveis impressionantes durante a quarentena", disse Lukyanov.

Para ele, "o déficit de informações confiáveis advindas de instituições governamentais levou a uma alta na demanda por um discurso alternativo".

"Mas, infelizmente, para se tornar um 'imã virtual' não é necessária formação específica [...] basta uma câmera e um canal em rede social", notou Lukyanov.

Conflitos na pandemia?

No início da pandemia, muitos apostaram em um congelamento dos conflitos bélicos, conforme os Estados se focam no combate à COVID-19.

"A pandemia teve um impacto nas atividades da coalizão liderada pela Arábia Saudita que luta no Iêmen", exemplificou Ganzha.

"Em 9 de abril [de 2020], Riad anunciou um cessar-fogo unilateral por duas semanas, alegando precisar concentrar-se no combate à COVID-19."

No entanto, o esforço não foi duradouro e "agora vemos que as hostilidades continuam [...] e a coalisão anunciou no início de junho a retomada de operações terrestres no Iêmen", disse Ganzha.

© REUTERS / Ahmed YosriRepresentante especial dos EUA para o Irã, Brian Hook, e o ministro das Relações Exteriores da Arábia Saudita, Adel al-Jubeir, em Riad, Arábia Saudita, 29 de junho de 2020
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Representante especial dos EUA para o Irã, Brian Hook, e o ministro das Relações Exteriores da Arábia Saudita, Adel al-Jubeir, em Riad, Arábia Saudita, 29 de junho de 2020

A Turquia fez uma outra interpretação: optou por reforçar suas atividades militares durante a pandemia, disse o professor da Escola Superior de Economia de Moscou Andrei Chuprygin.

"Com a pandemia, a Turquia acelerou seus esforços na Líbia, em Idlib e no leste do Mediterrâneo” por acreditar que esse é o momento correto para "promover sua agenda na região".

'[O presidente turco Recep Tayyip] Erdogan acredita que seus principais oponentes vão demorar a reagir por estarem ocupados com problemas internos."

Os EUA, por sua vez, "suspenderam seus planos de reduzir a presença do Comando dos EUA para África [AFRICOM] em função da pandemia", disse Fokina.

© AFP 2023 / Michele CattaniGaroto observa manifestantes contra o governo na capital do Mali, Bamaco, 11 de julho de 2020
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Garoto observa manifestantes contra o governo na capital do Mali, Bamaco, 11 de julho de 2020

Para ela, "Washington entendeu que organizações terroristas poderiam usar a situação da pandemia para expandir sua presença na região".

Fortalecimento do Estado?

Característica do Oriente Médio no século XXI é a fragmentação e o sectarismo, com muitas capitais que não controlam de fato o território de seus Estados.

"A COVID-19 deteriorou a situação econômica da região e colocou uma forte pressão nas obrigações dos Estados", questionou o diretor do Centro de Estudos Islâmicos da Academia de Ciências da Rússia, Vasily Kuznetsov.

"Quando o Estado não cumpre suas funções e perde a credibilidade perante a sociedade, isso é usado por apoiadores de visões radicais [...] que usam a pandemia como um instrumento de mobilização", alertou.

© AP Photo / Ariel SchalitManifestantes protestam contra a resposta do governo de Israel à crise econômica gerada pela COVID-19, Tel Aviv, 11 de julho de 2020
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Manifestantes protestam contra a resposta do governo de Israel à crise econômica gerada pela COVID-19, Tel Aviv, 11 de julho de 2020

Ele relata que, ao redor da região, "organizações islâmicas não governamentais estão se responsabilizando pelo atendimento social". Por isso, a pandemia "poderá fortalecer redes de solidariedade e outras estruturas islâmicas".

Mas o mesmo não é necessariamente verdade para organizações radicais jihadistas, como o Daesh (organização terrorista proibida na Rússia e demais países).

"Organizações radicais jihadistas só florescem em caso de vácuo total de poder em um território concreto, acompanhado de muita violência" disse Kuznetsov.

"Na Síria e no Iraque a situação já não é mais a de 2014 e 2015. Por isso, não acredito que as organizações radicais possam se reorganizar da maneira que fizeram no passado", acredita.

Essas organizações devem voltar a se organizar usando "células terroristas dormentes, às quais não é demandado o cumprimento de funções sociais", disse Kuznetsov.

© AFP 2023 / Mahmud Hams Membros do grupo Jihad Islâmica palestino realizam funeral simbólico de seu líder, morto no Líbano, Cidade de Gaza, 7 de junho de 2020
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Membros do grupo Jihad Islâmica palestino realizam funeral simbólico de seu líder, morto no Líbano, Cidade de Gaza, 7 de junho de 2020

Por outro lado, alguns centros de poder podem se beneficiar da pandemia se forem capazes de tomar as rédeas das medidas de combate à COVID-19.

"O governo sírio está fortalecendo sua presença no território nacional", disse o especialista do RMSD Aleksei Khlebnikov."Damasco já está em contato com os curdos, que estão sofrendo pela escassez crônica de remédios e equipamentos médicos."

Mesmo assim, "muitos são céticos em relação àqueles que dizem que a pandemia vai fortalecer o papel dos Estados" nessa região tão marcada pela fragmentação, reforçou Kuznetsov.

Fokina concorda, e lembra que "só aquilo que é forte pode ser fortalecido".

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