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EUA e golpe militar no Brasil: 'luta' contra avanço comunista ou medo de nova potência nas Américas?

© Tânia Rêgo/Agência BrasilExposição realizada no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) Rio de Janeiro trouxe registros da ditadura militar brasileira em 1973. Rio de Janeiro (RJ), 30 de agosto de 2023
Exposição realizada no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) Rio de Janeiro trouxe registros da ditadura militar brasileira em 1973. Rio de Janeiro (RJ), 30 de agosto de 2023 - Sputnik Brasil, 1920, 26.03.2024
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Era março de 1964, quando o então presidente João Goulart foi deposto do cargo por militares que deram fim ao curto período democrático no Brasil, até 1985, país enfrentava ditadura marcada pela repressão, violação dos direitos humanos e política autoritária, assim como toda a América Latina. Especialistas analisam influência dos EUA no processo.
Um dos períodos mais turbulentos da história recente do Brasil, o início da década de 1960 foi marcado pela eleição de duas figuras opostas no xadrez político: com a votação em separado para os dois cargos, o país elege Jânio Quadros como presidente e João Goulart, o Jango, para vice-presidente.
Em uma tentativa de autogolpe para conseguir apoio do Congresso e das Forças Armadas, Jânio apresenta a renúncia meses após a posse, o que seria o primeiro ingrediente para um prato cheio que levou ao golpe militar em 1964.
Na época, João Goulart estava em Cingapura, após uma extensa agenda na China, e só soube da renúncia no dia seguinte. Em setembro de 1961, há a tentativa de um golpe militar para impedir a posse de Jango, que só conseguiu assumir por conta da rede de "legalidade" montada pela liderança de Leonel Brizola — porém em um cenário de grave crise política.
Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, o historiador e professor de economia política internacional da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Marcos Cordeiro Pires conta que no ano seguinte, com as eleições para o Congresso Nacional, "começa a atuação da CIA [agência de inteligência norte-americana] no Brasil".
Com isso, aponta o especialista, o governo norte-americano ajuda a financiar a consolidação de uma bancada de deputados conservadora através do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), entidade anticomunista fundada em 1959.
"Ali foi despejado muito dinheiro para eleger deputados no Congresso, o que acaba inclusive influenciando depois a aceitação, sem base legal, da vacância de poder do Jango em 1º de abril de 1964. A outra questão é que às vésperas do golpe, através da operação Brother Sam, os Estados Unidos começam a se articular com militares e grupos de direita no Brasil", acrescenta.
Paralelamente à atuação norte-americana, as políticas de Jango voltadas para a nacionalização da indústria de petróleo, reforma agrária e reforma trabalhista, colocadas pela elite brasileira como um caminho inicial para "implantar o comunismo no país", são usadas como massa de manobra para grandes manifestações tomarem conta das ruas — como a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que em março de 1964 reuniu entre 300 mil e 500 mil pessoas em São Paulo. Tudo levava a um cenário ideal para a tomada do poder pelos militares apoiados pelos EUA, pontua o especialista.
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Por que os militares tomaram o poder em 1964?

Bem antes da tomada de poder pelos militares apoiados pelos EUA e pela elite brasileira, os norte-americanos intensificaram a intervenção na política do país, aponta o professor da Unesp.
"A propósito, em novembro do ano passado foram comemorados, ou não, 200 anos da Doutrina Monroe, em que os americanos colocam a América e o Caribe como o quintal norte-americano. Apesar de [a intervenção] ser menor no Brasil, em comparação com Cuba, Nicarágua, Haiti, República Dominicana e Venezuela, os EUA prestam mais atenção no país a partir da Segunda Guerra Mundial, com a aproximação muito forte com parcelas significativas das Forças Armadas", resume.
De acordo com o especialista, exemplos não faltaram nas décadas de 1940 e 1950, como a influência na elaboração da Constituição de 1946 e a criação da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos em 1951, para planejar investimentos no país, além das pressões para derrubar o governo de Getúlio Vargas em 1954.
"Ou seja, é atuação norte-americana no que considera o seu quintal. E ela é feita para não surgir nenhum rival dentro da América Latina e evitar que qualquer outra potência estrangeira possa estabelecer relações prioritárias e estratégicas na região."
E assim também foi feito durante a gestão Jango, quando os EUA ajudaram a reduzir drasticamente os investimentos no Brasil, o que ajudou a estrangular o governo.
Imediatamente após a posse de Humberto Castelo Branco, em abril de 1964, que inaugurava oficialmente a ditadura brasileira, é oferecido ao país um "empréstimo enorme", que seria como um "milagre" para alavancar a economia da época.

"Esse apoio norte-americano se consolida principalmente a partir de 1968, com o AI-5 [o ato institucional mais repressivo do regime militar], quando o governo dos militares brasileiros passa a integrar o interesse norte-americano contra a emergência de qualquer governo nacionalista ou socialista na América Latina", enfatiza o especialista.

Conforme Marcos Cordeiro Pires, o Brasil chegou a treinar militares chilenos que reprimiram a guerrilha no país andino, além de ensinar técnicas de tortura e ameaçar invadir o Uruguai por conta dos resultados das eleições de 1971 — o episódio ficou conhecido como "operação 30 horas" e seria colocado em prática pelo governo do general Emílio Garrastazu Médici, o mais ferrenho da ditadura, caso a coalizão de esquerda vencesse o pleito.
Apesar de não ter feito nenhuma incursão militar, o Brasil ajudou a fraudar os resultados que deram a vitória a Juan María Bordaberry, que em 1973 deu o golpe de Estado em Montevidéu.
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Até quando durou o golpe militar?

Quase uma década antes do fim do regime militar, com a eleição indireta que levou de volta um civil ao poder em 1985, o governo norte-americano dava apoio quase incondicional ao país. Porém o historiador explica que em 1976, já no governo do general Ernesto Geisel, é iniciada uma tentativa de buscar maior autonomia em relação aos EUA.
"O governo brasileiro reconheceu a independência de Angola, Moçambique, Cabo Verde e Guiné-Bissau, estabeleceu relações diplomáticas com a China e fez um acordo nuclear com a Alemanha Ocidental da época, contra o interesse norte-americano. E, nesse período, o governo Geisel tenta criar a lógica do Brasil potência, com o desenvolvimento de tecnologia e setores industriais, inclusive a capacidade nuclear", argumenta.
O ápice foi o início das negociações brasileiras com o Iraque de Saddam Hussein para o desenvolvimento compartilhado de armas atômicas entre os dois governos, o que levou ao fim definitivo do apoio norte-americano ao regime militar.
"E durante a administração [Jimmy] Carter, o governo norte-americano, que sempre foi cúmplice de todos os assassinatos e torturas na América Latina, passa a adotar uma política específica para o governo brasileiro relacionada aos direitos humanos […]. Você tem não só a retirada do apoio, mas também a ascensão do movimento redemocratizador", conclui.

Como o Brasil ficou após a ditadura militar?

Após mais de 20 anos de ditadura militar, em 1984 cresce a pressão da opinião pública para a retomada da democracia no país, principalmente com o movimento Diretas Já, cujo comício reuniu 1,5 milhão de pessoas nas ruas.
Mesmo assim, a emenda que determinava o voto popular para a Presidência da República não passou no Congresso Nacional, que escolheu o nome que ocuparia o cargo após João Figueiredo, o último do regime.

"A transição brasileira em 1984 não se deu por ruptura, se deu por negociação […]. A outra questão que foi pactuada era a de não ter nenhuma punição, e o primeiro presidente civil, com a morte do Tancredo Neves, que era da direita do MDB, foi justamente José Sarney, que um ano antes era o chefe do Partido Democrático Social [PDS], sigla que era a continuação da Arena, o partido de sustentação da ditadura militar", pontua o especialista.

Já o professor de relações internacionais do Ibmec Pedro Hudson Cordeiro acrescenta que, apesar da pressão pela abertura política no país, parte do governo militar não concordava com a transição de poder.

"Temos os registros de atentados, tentativas de atos antidemocráticos, em especial na época dos comícios das Diretas Já, para sabotar o processo. Também nos anos 1980 o Brasil começa a viver uma crise econômica, período em que a América Latina viveu grandes dificuldades e avanço da inflação", diz.

'Direito ao esquecimento' da ditadura militar no Brasil

Por fim, o professor do Ibmec considera que a redemocratização brasileira veio com uma proposta de "pacificação e direito ao esquecimento". Isso por conta do fim do regime militar sem qualquer tipo de punição aos diversos crimes cometidos, como tortura, assassinatos políticos e até corrupção.
"Não se pune um militar que tenha participado de um possível ato de tortura, não se pune um civil que tenha participado de um possível ato classificado como terrorista pelo governo. E assim, graças a esse direito de esquecimento, esse direito do silêncio, você buscava fazer uma transição pacífica, sem causar mais ruptura, sem tentar polarizar e incentivar os ânimos entre civis e militares", enfatiza.
E, segundo Cordeiro, o pacto pelo silêncio também foi adotado de forma geral pela sociedade brasileira.
"Não é à toa que hoje já se fala que, por exemplo, neste ano de 2024, quando o golpe de 1964 completa seus 60 anos, o governo federal e os militares têm ali uma 'aliança informal', em que nenhum dos lados vai se manifestar, até mesmo para evitar a piora da polarização que o Brasil já vive no momento. E assim vai se construindo esse silêncio", finaliza.
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