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Operações sujas, como tortura e massacres: especialistas comentam por que Kiev aposta em mercenários

© AP Photo / Hani MohammedMercenários norte-americanos
Mercenários norte-americanos - Sputnik Brasil, 1920, 07.03.2024
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Comitê de Investigação da Rússia apontou a presença de mercenários de mais de 50 países nas fileiras do regime de Kiev no conflito ucraniano. Em entrevista à Sputnik Brasil, analistas apontam que o caso sugere a existência de operações sujas, com violações às leis do direito humanitário.
O Comitê de Investigação da Rússia apresentou, nesta quinta-feira (7), um balanço das investigações sobre crimes de guerra cometidos pelo regime de Kiev, contra civis e militares russos, em territórios das repúblicas populares de Donetsk (RPD) e Lugansk (RPL), e nas regiões de Zaporozhie e Kherson.
Entre os crimes de guerra revelados na investigação, por exemplo, está o caso de um atirador ucraniano que, por ordem do comando, disparou com um lançador de granada contra a janela de um prédio residencial em Severodonetsk, em Lugansk, matando um homem e uma mulher, ambos civis.
Os processos, que de acordo com o comitê são baseados em ações investigativas e perícias, também apuram o recrutamento e a participação de mercenários pelo regime de Kiev. Com base nas provas, foram identificados mercenários de nacionalidades diversas, incluindo Países Baixos, Nova Zelândia, Noruega, Polônia e Romênia.
No total, 700 estrangeiros foram colocados na lista de procurados, tendo alguns sido detidos. Em paralelo, a inteligência militar ucraniana admitiu que mercenários de mais de 50 países estão lutando nas fileiras de Kiev.
Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas explicam o que a presença de um grande número de mercenários nas linhas ucranianas diz sobre o curso do conflito, qual a diferença entre mercenários e empresas militares privadas e a que leis internacionais combatentes dessas modalidades estão sujeitos.
Para Héctor Saint-Pierre, especialista em segurança internacional da Universidade Estadual Paulista (Unesp), o reconhecimento oficial de Kiev sobre a presença de mercenários em operação "é apenas a confirmação oficial de algo que todo mundo já sabia".

"Tem alguns casos de soldados oficiais de países europeus que, na forma de empresas de segurança ou empresas de guerra, como são chamados os mercenários contemporaneamente, estão operando no terreno de operações no território ucraniano desde que terminou o conflito da Rússia contra a Ucrânia, em março de 2022, e começou a guerra da Rússia com a OTAN [Organização do Tratado do Atlântico Norte]. A OTAN já vinha treinando, preparando e armando os ucranianos desde 2014. Desde 2014 mais intensamente, na realidade foi um pouco antes."

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Segundo o especialista, a presença de mercenários treinados pela OTAN no conflito ucraniano já foi confessada pela ex-chanceler alemã Angela Merkel e pelo ex-presidente francês François Hollande, que inclusive admitiu que estavam sendo treinados combatentes tanto em território europeu quanto ucraniano para prosseguir com o que Saint-Pierre classifica como "guerra encoberta" ou "guerra por procuração da OTAN contra a Rússia na Ucrânia".
"O uso de mercenários, como digo, chamados empresas de guerra, é uma forma que tem nos países contemporaneamente de não se involucrar diretamente em um conflito armado. É uma forma de apoiar alguma parte de um conflito […] para realizar operações 'sujas', operações não muito legais, ou contra os direitos humanitários, os direitos que regulam os conflitos, por exemplo tortura ou massacres de cidadãos para diminuir o apoio logístico a guerrilheiros. Todos esses tipos de operações são feitos por essas empresas, que depois se desmontam quanto a uma razão empresarial e se remontam como se fossem outras empresas, e isso não compromete os países que estão realmente interessados", explica Saint-Pierre.
Por sua vez, Nathana Garcez Portugal, doutoranda em relações internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas, afirma que o reconhecimento oficial de Kiev em torno da presença de mercenários no conflito ucraniano reflete algo comum que vem acontecendo, e isso se dá por diversos motivos, entre eles evitar uma rejeição da opinião pública em relação à possibilidade de feridos e mortos dentro dos exércitos.
"Muitas vezes utiliza-se empresas militares e mercenários para evitar esses mortos nacionais, corpos militares feridos e abatidos que sugerem um problema de opinião pública."
Ela acrescenta que o uso de mercenários visa realizar ações no campo de combate que "não são permitidas no direito internacional humanitário, no direito internacional de guerra".
Sobre a presença de mercenários nas fileiras de Kiev, Garcez afirma que isso indica que o conflito ucraniano "se reforça como um conflito que muitas vezes foge da aplicabilidade do direito internacional humanitário, onde muitas ações, dentro desse conflito armado, podem estar violando diversas leis, tanto de direitos humanos quanto do direito de guerra".

"Essa presença indica fortemente isso, assim como indica que possivelmente existem outras forças fomentando a manutenção do esforço de guerra no caso da Ucrânia."

Qual a diferença entre mercenários e empresas militares?

Nathana Garcez sublinha que é necessário diferenciar mercenários de empresas militares privadas.

"A definição das Convenções de Genebra sobre mercenários é um indivíduo recrutado no próprio país ou no exterior com objetivo específico de lutar em um conflito armado. Ele tem que participar, de fato, dessas hostilidades para obter vantagens pessoais que sejam consideradas substancialmente maiores do que as prometidas ou pagas aos combatentes das Forças Armadas das partes envolvidas no conflito."

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Ela acrescenta que um mercenário "não é um integrante das forças armadas das partes envolvidas no conflito e também não pode nunca ter sido enviado em missão oficial como membro dessas forças armadas dos Estados envolvidos".
"Já empresas militares privadas e de segurança privadas são entidades militares privadas que prestam serviços militares e/ou de segurança, que estão no âmbito da segurança de forma independente, como elas se autodescrevem. Ou seja, tem que ser analisado o serviço que elas prestam, e se forem serviços militares e de segurança, elas já são consideradas empresas militares ou de segurança privada."
Ela afirma que, em algumas situações, é difícil distinguir mercenários de integrantes de empresas militares privadas, mas ressalta que quando empresas militares privadas utilizam seus funcionários em combates diretos, participando das hostilidades, em uma forma análoga aos mercenários, eles deixam de ter a proteção do direito internacional humanitário para conflitos armados.

"E aí, quando essas empresas militares privadas utilizam combatentes nessa forma, in loco, participando diretamente das hostilidades, existem correntes do direito internacional que entendem que elas devem ser julgadas de forma análoga aos mercenários. Mas, no entanto, ainda existe uma disputa de correntes jurídicas em torno do tema", explica a especialista.

Que riscos mercenários representam ao retornar aos seus países de origem?

Questionado sobre se mercenários constituem algum tipo de perigo quando retornam aos seus respectivos países de origem, Saint-Pierre descarta essa possibilidade, apontando que normalmente esses grupos não possuem vínculo com os países onde combatem.
"Portanto [eles] não têm compromisso nacional, um compromisso pátrio, com nenhum país. São mercenários empresários da morte, da guerra, […] são multinacionais. Na realidade, os mercenários ou combatentes de uma empresa de guerra lutam pelo único interesse de seu bolso, e seus interesses são interesses comerciais. Ele vende sua força de trabalho, que é sua especialidade, fazer a guerra, a especialidade da morte, ou de operações, ou de logística."
Ele acrescenta que o local de combate tem uma importância apenas topográfica e que "a pátria do mercenário é o dinheiro". "Isso já está explicado em textos bem antigos, […] Maquiavel faz uma descrição bastante detalhada."
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Já Garcez adverte que mercenários que travam embates em outros países podem configurar um perigo aos seus países de origem justamente porque atuam em benefício próprio, "motivados por um desejo de ganho pessoal".

"Esses mercenários estão em busca de ganhos pessoais, então eles podem muito bem ser ativados por terceiros, mesmo outras empresas, forças e atores mais escusos, menos dentro da lei, digamos assim. E podem ser utilizados para abalar a ordem nacional. Isso de fato tem sido uma agenda de pesquisa que tem estado muito em voga nos estudos sobre mercenagem e sobre empresas militares, com mais enfoque, claro, nos mercenários", explica Garcez.

"Então, sim, eles representam um risco, ainda que não necessariamente venham a atuar nos próprios países. Muitas vezes, esses mercenários ficam se deslocando entre conflitos armados regionais e no âmbito da segurança internacional, muito mais do que na ordem interna. Mas não se pode excluir o perigo que eles representam para a ordem interna das nações", complementa.

Mercenários podem ser processados por crimes de guerra?

Héctor Saint-Pierre afirma que os mercenários "não podem ser processados em seus próprios países pela sua atitude". Isso porque as empresas que os contratam garantem que seus nomes serão encobertos em casos de operações muito sujas.
"Todas essas operações são praticamente fora das leis do direito humanitário. Mas em geral são encobertas, e [é] muito difícil processar tanto a empresa quanto os combatentes em terra. Justamente por isso países utilizam esse recurso das empresas de guerra, também chamados mercenários, para não se involucrar diretamente no conflito armado. Apenas financiam essa mobilização de tropas privadas. São empresas privadas, portanto não pertencem a um país, eles lutam por qualquer um que pague seu salário", explica Saint-Pierre.
Ele acrescenta que os processos são descartados também para poupar a imagem de mandatários, que seria desestabilizada caso o país em questão mobilizasse suas próprias tropas oficiais.

"Quando um país entra em uma guerra, seja em seu país ou em um território alheio, ele tem que mobilizar se entra com seu próprio Exército, a tropa da reserva, fazer um recrutamento, chamar cidadãos para ir à guerra. Isso cria um mal-estar dentro da sociedade, que muitas vezes não sabe bem por que se luta nem para que se luta, e [os cidadãos] não querem participar disso. Isso cria movimentos que desestabilizam os países, cria um dos motivos pelos quais países recorrem às empresas de guerra."

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Já Garcez afirma que, no caso de empresas militares privadas, existe "um vácuo legal que dificulta o ato de processar tais empresas quando elas se encontram ferindo as regulações internacionais de guerra ou as leis do direito humanitário".
Entretanto, ela afirma que existem correntes dentro do direito internacional que acreditam que empresas militares privadas não devem atuar em um vácuo legislativo. Essa corrente acredita que em situações de conflito armado o direito internacional humanitário deve, sim, servir para regular o comportamento dessas empresas militares privadas, quanto às responsabilidades dos Estados que as contrataram.

"Portanto, dentro desse viés, tanto mercenários quanto empresas militares privadas estão previstos dentro do direito internacional humanitário e podem, porventura, ser processados por atuações que estejam fora da lei", afirma a especialista.

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