Em 2022, Rússia mostrou que sabe abalar o mundo e Brasil se beneficia disso, diz analista

Em 2022, a Rússia conduziu o mundo a mais uma mudança geopolítica estrutural, que terá consequências positivas para o Brasil. A Sputnik Brasil conversou com especialistas para relembrar os melhores momentos das relações Brasil-Rússia em 2022 e saber o que nos espera em 2023.

O ano de 2022 foi um dos mais positivos para as relações comerciais e políticas entre Brasil e Rússia da última década. Contrariando as expectativas de muitos analistas, o comércio entre os países cresceu neste ano de crise geopolítica.

"Acredito que 2022 marcará a história da humanidade de uma maneira positiva. Nesse ano, começamos mais uma grande mudança, novamente encabeçada pela Rússia, um país que provou que realmente sabe abalar o mundo", disse o professor e pesquisador da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Fred Leite Siqueira Campos, à Sputnik Brasil.

Segundo ele, as mudanças geopolíticas ocorridas em 2022 são mais relevantes do que as geradas pelos ataques de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, que desencadearam as invasões de países como Iraque e Afeganistão.

"As ações da Rússia catalisam a formação de um mundo multipolar, que substituirá o velho e moribundo mundo unipolar liderado pelos EUA", acredita Campos. "Na minha opinião, essa mudança será positiva para o Brasil."

Desfile aéreo sobre a Praça Vermelha

© Sputnik / Nina Zotina

A imposição de sanções econômicas pelos EUA e aliados contra Moscou a partir de fevereiro de 2022 geraram dificuldades para a manutenção das relações entre Rússia e Brasil. No entanto, dados da Secretaria de Comércio Exterior do Ministério da Economia apontam para o crescimento no fluxo comercial.

As exportações brasileiras para a Rússia acumuladas até outubro de 2022 tiveram aumento de 28% em relação ao mesmo período do ano passado. Já as exportações russas para o Brasil cresceram 48,3%, atingindo um de seus melhores desempenhos históricos. O resultado fez com que a Rússia se firmasse como o 6º principal destino de importações brasileiras.

De acordo com o pesquisador e membro do grupo de pesquisas sobre BRICS da Universidade de São Paulo (GEBRICS-USP), Valdir da Silva Bezerra, o bom desempenho comercial reflete o esforço da Rússia para fortalecer parcerias com países não ocidentais.

"A Rússia realiza uma espécie de 'pivô' para o Sul Global, ou seja, aumenta sua aproximação de países da América Latina, África e partes da Ásia, justamente por estar sofrendo uma tentativa de isolamento econômico, político e diplomático por parte do Ocidente", disse Bezerra à Sputnik Brasil. "Com a Rússia olhando mais firmemente para essas regiões, é de se esperar que o aumento do comércio seja um dos instrumentos de aproximação."

O estreitamento comercial também é resultado da aproximação do governo Bolsonaro com Moscou. De acordo com Bezerra, Bolsonaro optou tardiamente por uma aproximação com a Rússia, após amargar a derrota de seu aliado norte-americano, o ex-presidente Donald Trump, nas eleições de 2021.

"O momento diplomaticamente mais impactante das relações [Brasil-Rússia] foi certamente a visita de Estado de Bolsonaro a Moscou em fevereiro deste ano, pouco antes do início do conflito", disse Bezerra.

Presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, durante a cerimônia de aposição floral no Túmulo do Soldado Desconhecido no centro de Moscou, Rússia, 16 de fevereiro de 2022.

© Sputnik / Sergei Karpukhin

Durante a visita, Bolsonaro afirmou que Brasil e Rússia estão unidas não só pela agenda econômica, mas por uma confluência de valores.

"Realmente, é mais que um casamento perfeito o sentimento que eu levo para o Brasil", disse Bolsonaro durante sua estadia na capital russa. "Os valores russos em grande parte estão em sintonia com os nossos."

Fator Ucrânia

A visita de Bolsonaro foi realizada em momento de tensão internacional, que precedeu o início da operação militar especial russa na Ucrânia. De acordo com Bezerra, a visita foi essencial para o Brasil formular sua política diante do conflito em 2022.

"A visita acabou se mostrando instrumental no estabelecimento da neutralidade brasileira frente à situação na Ucrânia, assim como na postura mais comedida de Bolsonaro, no sentido de não tecer críticas diretas à Rússia ou ao próprio Putin", declarou Bezerra.

De fato, o presidente Bolsonaro e o Itamaraty adotaram uma política de neutralidade em relação ao conflito ucraniano. O Brasil repudia o início do conflito e pede uma saída negociada, mas não compactua com as sanções econômicas unilaterais, nem com a tentativa de isolamento diplomático da Rússia.

"A posição do Brasil não me surpreendeu. Somos um país historicamente neutro e não alinhado", disse Campos. "Perdemos a conta do número de guerras que os EUA conduziram, e o Brasil igualmente se manteve neutro."

Os especialistas concordam que a adesão às sanções econômicas tampouco interessa ao Brasil do ponto de vista comercial. A competitividade dos fertilizantes agrícolas russos, necessários para a manutenção da competitividade do agronegócio brasileiro, pesou na balança do Itamaraty.

Marcos Molina (à esquerda), CEO do frigorífico Marfrig e Andrei Guriev (à direita), CEO da PhosAgro, após encontro do Conselho Empresarial Brasil-Rússia, Moscou, Rússia, 15 de fevereiro de 2022

© Foto / Novikov Dmitry

"O Brasil pouco teria a ganhar se apoiasse as sanções contra a Rússia, uma vez que se encontra dependente de importantes insumos, como fertilizantes, para seu setor agrícola", notou Bezerra. "Além disso, existe um interessante potencial, ainda inexplorado, de ampliação da cooperação bilateral, que vai desde o setor energético até o tecnológico e militar."

O ano de 2022 foi rico em assinatura de acordos nessas áreas. Em meados de outubro, a empresa russa de energia nuclear Rosatom selou acordo com sua homóloga brasileira, a ENBPar, para fomentar a cooperação na área. No início de dezembro, a subsidiária da Rosatom firmou contrato para comercializar combustível nuclear para as usinas brasileiras instaladas em Angra dos Reis.

Governo Lula 3

Após um ano de 2022 resiliente e bem-sucedido, resta saber se as relações bilaterais vão manter a boa fase sob o governo de Luiz Inácio Lula da Silva.

Nesta terça-feira (20), o presidente eleito manteve conversa telefônica com o presidente russo, Vladimir Putin, nas quais se comprometeram a manter contatos regulares, informou o governo russo.

"Conversei hoje [terça] com o presidente russo Vladimir Putin, que me cumprimentou pela vitória eleitoral, desejou um bom governo e o fortalecimento da relação entre nossos países. O Brasil voltou, buscando o diálogo com todos e empenhado na busca de um mundo sem fome e com paz", escreveu Lula em rede social.

A conversa teria durado cerca de 30 minutos, e incluiu tópicos como um possível encontro presencial entre os líderes, seja na capital russa ou às margens de encontros internacionais, informou o portal G1.

O presidente russo, Vladimir Putin (à direita), e o então presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, apertam as mãos durante cerimônia de assinatura no Kremlin, em Moscou, em 18 de outubro de 2005

© AP Photo / Aleksander Zemlianichenko

De acordo com Bezerra, as relações entre Brasil e Rússia devem se fortalecer sob o novo governo, uma vez que as estratégias geopolíticas de Lula e Putin coincidem.

"Deverá existir um adensamento na parceria estratégica russo-brasileira, já que ambos os países estarão mais voltados em intensificar laços com o Sul Global", considerou Bezerra. "Podemos dizer que há uma consonância geopolítica entre eles."

De acordo com o governo russo, Lula e Putin "expressaram confiança de que a parceria estratégica russo-brasileira continuará a se desenvolver com sucesso em todas as áreas, bem como a cooperação na arena internacional, inclusive no âmbito do BRICS".

"O BRICS acaba ganhando, visto que Lula foi um dos fundadores políticos desse agrupamento, que deverá ter um lugar de destaque no campo da política externa brasileira", reforçou Bezerra.

Campos concorda que o relacionamento deve seguir em trajetória positiva, mas lembra que o governo Lula "não vai cortar o cordão umbilical" que liga o Brasil de forma dependente aos EUA. Além disso, o novo presidente enfrentará uma agenda interna um tanto complicada.

"Há aquela conhecida diferença entre a intenção e o gesto: o governo está com uma infinidade de problemas sociais e econômicos internos para resolver. Por isso, em um primeiro momento, acho que Lula não fará grandes alterações nas relações do Brasil com a Rússia", concluiu Campos.

Em 1º de janeiro, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva assumirá a presidência do Brasil. A Rússia estará representada na cerimônia, tanto pelo corpo diplomático residente em Brasília, quanto pela presidente do Conselho da Federação da Rússia, Valentina Matvienko.