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Acusar eleição de fraude é uma tática política que mira o emocional do eleitorado, dizem analistas

© FolhapressManifestantes bolsonaristas protestam em frente ao Comando Militar do Leste (CML), no Centro do Rio de Janeiro (RJ), em 15 de novembro de 2022
Manifestantes bolsonaristas protestam em frente ao Comando Militar do Leste (CML), no Centro do Rio de Janeiro (RJ), em 15 de novembro de 2022 - Sputnik Brasil, 1920, 24.11.2022
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Em entrevista à Spuntik Brasil, especialistas apontam que a tendência de contestar eleições não é restrita ao Brasil e representa um dos maiores desafios contemporâneos para a democracia.
As eleições de 2022 acabaram, mas o debate em torno do resultado da votação parece longe do fim. Nesta semana, a coligação Pelo Bem do Brasil, da qual faz parte o Partido Liberal (PL), legenda do presidente da República Jair Bolsonaro, foi multada em R$ 22,9 milhões por litigância de má-fé, após pedir a anulação do segundo turno, apontando suspeita sobre o bom funcionamento das urnas eletrônicas.
O episódio é mais um capítulo do movimento de contestação das eleições observado no Brasil, que vem levando apoiadores do presidente a acamparem em frente a quartéis pedindo a anulação do pleito e, em alguns casos, uma intervenção federal.
O caso do Brasil não é isolado e indica uma tendência global de questionamento de processos eleitorais, antes vistos como uma das ferramentas mais importantes para democracias. Em 2020, o então presidente dos EUA, Donald Trump, acusou de fraude as eleições que o retiraram da Casa Branca. A retórica ganhou adesão de parte do eleitorado americano, que nas recentes eleições legislativas respondeu elegendo mais de 160 congressistas que negam ou questionam as eleições de 2020.
Essa tendência também não é restrita ao continente americano. Em Israel, em 2021, Benjamin Netanyahu acusou as eleições que elegeram a nova coalizão que iria substituí-lo no poder de serem "a maior fraude eleitoral da história da democracia". E neste ano, na Itália, antes mesmo da votação do pleito que elegeu Giorgia Meloni primeira-ministra, acusações de que as eleições teriam sido fraudadas já circulavam nas redes sociais.
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Para entender por que as eleições estão sendo questionadas ao redor do mundo, a Sputnik Brasil conversou com Victor Piaia, sociólogo e pesquisador dos grupos de estudos em Comunicação, Sociedade e Mídia Digital e em Sociologia Política e Transformações Digitais da Fundação Getulio Vargas (FGV), e Alessandra Maia, cientista política e professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

Crise financeira de 2008 como estopim da tendência

Alessandra Maia ressalta que o fenômeno de contestação das eleições remete à crise financeira global de 2008, que nos anos seguintes se alastrou pelo mundo, gerando crises econômicas e de trabalho. Ela aponta que isso levou a mudanças na cadeia de produção do capitalismo e a uma reacomodação que "significou perdas de postos de trabalho, falências de sistemas e revisão de aposentadorias".
Segundo ela, a atual crise de escassez de recursos observada no mundo e as mudanças climáticas também tiveram um papel nesse contexto e desencadearam uma urgência "por respostas rápidas e busca por culpados".

"Nesse contexto, observa-se uma empreitada autoritária, em diferentes países, de figuras que usam o voto para ações que vão contra a rotina democrática. Nesse sentido, também contra as eleições ou tentando instrumentalizar as eleições para tentar se manter no poder continuamente. Isso é um sintoma grave, mas só pode ser visto nesse contexto de crise porque mobiliza as emoções. As pessoas estão sem trabalho, estão em sofrimento e por isso também querem soluções rápidas", diz a cientista política.

Ela aponta que essa busca por soluções rápidas, galvanizando a insatisfação popular, é grave e já foi responsável por guerras no passado recente. "Se a gente pensa na Segunda Guerra Mundial e na situação da Alemanha na guerra, foi exatamente o berço que elegeu [Adolf] Hitler. Hitler é eleito e vem com uma proposta extremamente autoritária."
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Victor Piaia, por sua vez, diz não ter dúvida de que "se trata de um fenômeno global". Ele credita esse fenômeno à extrema-direita, que tem recorrido a uma estratégia política de questionar o establishment.
"Tudo que é poder constituído, autorizado, legitimado está no alvo desses movimentos [de extrema-direita]", diz o pesquisador, acrescentando que esse movimento faz uso de teorias da conspiração.
"Essa perspectiva conspiracionista também se aplica do ponto de vista eleitoral. As eleições seriam um grande teatro em que grupos que controlam e manipulam a população se legitimam popularmente, por isso eles estão na mira", diz Piaia.
Porém ele destaca que há um "movimento duplo" nessa tendência. "É curioso que, ao mesmo tempo em que questiona-se muito os processos eleitorais, tem-se a construção de candidaturas que são eleitoralmente fortes. É um movimento duplo que foi muito observado aqui no Brasil, em que, por um lado, Bolsonaro quase conseguiu ganhar as eleições, mas em nenhum momento deixou de alimentar uma dúvida no processo em que ele mesmo estava competindo. E em 2018 ele contestou [as eleições], não formalmente, mas manteve o discurso de fraude mesmo tendo ganhado", diz o pesquisador.

Redes sociais como zonas de plena concordância

Victor Piaia explica que as redes sociais têm uma forte relação com a tendência de questionamento de eleições. Ele aponta uma pesquisa feita pela Escola de Comunicação, Mídia e Informação (ECMI) da FGV, no âmbito do projeto Democracia Digital, na qual esteve envolvido e que tinha como alvo a plataforma Parler.

"Algumas conclusões parciais que observamos foram que essas redes para onde a extrema-direita tenta se movimentar são 'redes do consenso'. Nessas redes alternativas, nesse caso a Parler, a gente observa que é uma grande rede do consenso: todo mundo ali tem a mesma perspectiva política e vai endossando o mesmo conteúdo."

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Segundo Piaia, as redes sociais são um território fértil para divulgação de teorias conspiracionistas "que não encontram eco na mídia tradicional, que passam por uma série de filtros, critérios de apuração, de confiabilidade". Ele também destaca que as redes permitem a criação de conteúdo próprio.
"As redes sociais têm esse papel de circulação, mas também de produção intensa de conteúdo, que é descentralizada. O conteúdo é jogado na rede e pode ser criado por qualquer um. Pode, eventualmente, ser capturado por uma liderança, que amplifica o alcance dele", diz o pesquisador.
Ele ressalta que as redes se tornaram parte da construção da realidade, por ser um "ambiente de intensa circulação de conteúdo" em tempo real, que não favorece o tipo de produção discursiva mais neutra, mais sóbria".

"Ela [a produção discursiva nas redes] é sempre calcada na ideia de 'urgente', 'grave', esse tipo de construção que tenta apelar para as emoções. Vai cercando e sendo constitutivo da forma como as pessoas constroem a realidade. Isso se aplica a qualquer questão, boas e ruins, positivas, negativas, inclusivas, exclusivas, democráticas ou antidemocráticas, e se aplica também nessa pauta específica sobre fraude eleitoral."

Alessandra Maia diz considerar que as redes sociais têm o mesmo poder de amplificação do discurso visto em outras tecnologias anteriores voltadas para a comunicação.

"Eu vejo as redes sociais hoje como uma tecnologia, da mesma forma que se você propaga no rádio ou na televisão uma determinada mensagem, isso se amplia. As pessoas estão se habituando ao ambiente das redes. Mas vejo isso também com limitações. As redes sociais já têm mecanismos de acompanhamento de conteúdos, de denúncia, então acredito mais em aperfeiçoamento dos controles que já existem. Acho que é a forma mais saudável de lidar com as calúnias e inverdades que você pode receber via rede social."

Um dos maiores desafios contemporâneos para a democracia

Ambos os especialistas dizem acreditar que a tendência de contestar eleições é grave para a democracia. Para Alessandra, "o grande problema não é a acusação de fraude em si", mas sim a produção de calúnia.
"É obvio que todo e qualquer sistema político deve ter prestação de contas, deve estar aberto a ampla consulta, a amplo acompanhamento. Isso existe no Brasil. O problema dessa proposta do Bolsonaro sobre fraude nas eleições é que ela não se baseia em provas. Ela se baseia simplesmente na contestação que visa causar turbulência. E isso deveria também ser avaliado como ato de má-fé. Porque quando você acusa sem provas, na verdade você não está acusando, está produzindo uma calúnia", diz a especialista.
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Ela acrescenta que "a retórica contra as eleições é grave porque as eleições são a forma crucial de se solucionar decisões em que existe discordância".

"O princípio fundamental da eleição é que você vai votar sabendo que o voto que alcançar a maioria terá de ser respeitado. É a regra do jogo. Você não pode simplesmente contestar a regra do jogo se o seu voto não se concretiza, porque isso faz parte do jogo. É como se você fosse para um jogo de futebol, aí o resultado do jogo é 3 a 0 e você não aceita porque resolve dizer que não quer mais aceitar gols como [critério para o] resultado do jogo. Obviamente é algo danoso à democracia, porque o voto é uma conquista muito importante. Se pensar no Brasil, o voto só foi rotinizado para toda a população a partir de 1988."

Piaia, por sua vez, finaliza afirmando que a contestação das eleições "é um desafio democrático contemporâneo", calcado em duas frentes: a primeira é "a consolidação de uma parte da população que tem como pressuposto político que as instituições são uma fraude, que a eleição é um lugar de manipulação"; a segunda "é o risco latente de que, em algum momento ou contexto, esse discurso [de fraude] transborde e capture também a outra parte da população além da parcela já capturada por essa narrativa".

"Outro ponto é o papel das instituições, dos partidos políticos. Quando um partido político endossa esse tipo de narrativa, é evidentemente problemático. Porque escala a questão para uma esfera institucional. Mas usualmente na ala política a ideia é que não se sustente, uma vez que os partidos dependem do processo eleitoral. Eles têm maiores custos em aderir a esse tipo de narrativa do que a população de modo amplo."

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