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Lava Jato x Mãos Limpas: Brasil conseguirá lavar a corrupção que resistiu na Itália?

Manifestação em Brasília em defesa da Operação Lava Jato
Manifestação em Brasília em defesa da Operação Lava Jato - Sputnik Brasil
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“É ingenuidade pensar que processos criminais eficazes contra figuras poderosas, como autoridades governamentais ou empresários, possam ser conduzidos normalmente, sem reações. Um Judiciário independente, tanto de pressões externas como internas, é condição necessária para suportar ações judiciais da espécie”.

"Entretanto, a opinião pública, como ilustra o exemplo italiano, é também essencial para o êxito da ação judicial".

Os trechos acima foram escritos em 2004 pelo juiz federal Sérgio Moro, então desconhecido do público brasileiro, em artigo intitulado “Considerações sobre a Operação Mãos Limpas (Mani Pulite, em italiano)”, publicado na revista CEJ, do Conselho da Justiça Federal. O estudo desta operação, que torpedeou o sistema político italianos nos anos 1990, deu o norte que a Operação Lava Jato seguiria, dez anos depois, desnudando a corrupção no país de uma maneira nunca antes vista.

Do início inspirado por encontros entre investigados em um posto de gasolina de Brasília (daí o nome Lava Jato), no qual eram feitos pagamentos ilegais, até o presente que implica até mesmo o atual presidente da República, Michel Temer (PMDB), já foram instaurados 1.765 procedimentos, 207 prisões (entre preventivas, temporárias e em flagrante), 158 acordos de delação premiada, 157 condenações que totalizam 1.563 anos, 7 meses e cinco dias de prisão, e um total ressarcido de R$ 38,1 bilhões (incluindo multas) aos cofres públicos.

Os números são impressionantes, assim como foram com a Mãos Limpas, deflagrada em 1992 e que durou dois anos, tendo investigado 6.059 suspeitos (872 empresários, 1 978 administradores locais e 438 parlamentares, dos quais quatro haviam sido primeiros-ministros) – destes, 3.200 foram levados a julgamento. Ao final, 1.300 foram condenações e o desaparecimento dos dois principais partidos do governo à época – o Socialista Italiano (PSI) e a Democracia Cristã (DC). Contudo, as mãos sujas pela corrupção não ficaram mais limpas após o fim da operação na Itália.

Em maio de 1994, o empresário Silvio Berlusconi tornou-se primeiro-ministro e, entre as suas muitas argumentações para chegar ao posto, defendeu a Mãos Limpas. No poder, patrocinou leis que enfraqueceram o Judiciário italiano, e a corrupção e os seus velhos personagens tiveram espaço para permanecer ou se rejuvenescer no poder. Os juízes envolvidos na Mãos Limpas, aliás, tentaram até mesmo se aventurar pela política após o fim da operação, mas sem sucesso.

Teria o Brasil uma oportunidade para não repetir o mesmo enredo protagonizado pelos italianos? Às vésperas de 2018, ano de eleições presidenciais no país, o exercício de futurologia expõe certas limitações, mas há elementos de comparação entre as duas realidades que permitem visualizar as possibilidades que possuem mais força hoje.

Avanços

Desde o seu início, a Lava Jato expôs à sociedade brasileira e ao mundo um dos maiores esquemas de corrupção do planeta, “prêmio” este concedido pela ONG Transparência Internacional. As negociações envolvendo o superfaturamento de obras em troca de pagamentos de propina por empresários para políticos e seus partidos, foram combustível em um país que já vinha de uma mobilização popular por melhores serviços públicos (em 2013) e eleições presidenciais acirradas (em 2014). O impeachment da eleita, Dilma Rousseff (PT), também sofreu a influência das repercussões da operação.

Em entrevista exclusiva à Sputnik Brasil, o doutor em sociologia pela Universidade de Oxford Celso Rocha de Barros avaliou como avanços os resultados obtidos pela Lava Jato até aqui. De acordo com ele, a operação – aqui inseridos a Força-Tarefa com componentes do Ministério Público Federal (MPF) e o Poder Judiciário – vem resistindo de maneira surpreendente aos ataques dos demais poderes (Executivo e Legislativo), diretamente atingidos pelas descobertas da Lava Jato.

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“Estamos em uma encruzilhada. Fico surpreso com isso, o normal seria já terem matado a Lava Jato, mas até o Judiciário vem resistindo aos avanços neste sentido. É lógico que o sistema político não vai cair sem espernear, isso é esperado e normal. A questão central quando pensamos na Lava Jato [em comparação à Operação Mãos Limpas] é saber não se vai acabar ou não como na Itália, mas sim qual será o grau dos avanços aqui. O que é certo é que [a corrupção] não vai acabar inteiramente”, avaliou.

Salvas as devidas realidades temporais e nacionais, o enredo escrito por ambas as operações é ligado quase que umbilicalmente. “As investigações judiciais dos crimes contra a administração pública espalharam-se como fogo selvagem, desnudando inclusive a compra e venda de votos e as relações orgânicas entre certos políticos e o crime organizado”, escreveu Sérgio Moro, em seu artigo de 2004, a respeito da operação italiana. “A corrupção envolve quem paga e quem recebe. Se eles se calarem, não vamos descobrir, jamais”, disse o juiz, em outro trecho.

Com as eleições de 2018 a vista no Brasil, Celso Rocha de Barros considera “difícil livrar” aqueles políticos que já caíram por intermédio da Lava Jato. “Pensa no Eduardo Cunha [ex-presidente da Câmara dos Deputados, preso em Curitiba desde outubro de 2016]: ele só se livrar se for por meio de uma delação premiada. Eu acho que quem caiu, caiu. Vai ser difícil se livrar. Pensando nas eleições do ano que vem, vai ser difícil também haver candidato contrário à operação”.

Retrocessos

Em uma de suas conclusões a respeito da Mãos Limpas, Sérgio Moro destacou, nos idos de 2004, que “talvez a lição mais importante de todo o episódio seja a de que a ação judicial contra a corrupção só se mostra eficaz com o apoio da democracia”, e que ela “quem define os limites e as possibilidades da ação judicial”. “Enquanto ela contar com o apoio da opinião pública, tem condições de avançar e apresentar bons resultados”, completou no mesmo trecho.

Envolvido diretamente na operação italiana, o ex-juiz Gherardo Colombo deixou algumas lições a respeito da sua experiência na luta contra a corrupção. De acordo com ele, que abandonou a carreira por acreditar que não seria possível combater tal mal por meio da magistratura, parte do problema que levou a uma sensação amarga, ao final da Mãos Limpas, teve a participação da própria população da Itália.

“A corrupção não diminuiu […]. Para mim, a cidadania, os cidadãos comuns tiveram uma parte importante na decretação do fim da Mãos Limpas porque, no início, eram todos entusiastas na Itália das investigações, pois elas nos levavam a descobrir a corrupção de pessoas que estavam lá em cima. Mas, conforme elas prosseguiram, chegamos à corrupção dos cidadãos comuns: o fiscal da prefeitura que fazia compras de graça, que não fiscalizava a balança do vendedor de frios, que continuava a vender apresuntado como se fosse presunto…”, disse Colombo, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo.

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Doutor em filosofia e professor de Ética Política no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, Roberto Romano, analisou a pedido da Sputnik Brasil as situações do passado e do presente que ligam a operação italiana com a brasileira. Segundo o docente, a Mãos Limpas não conseguiu prever o resultado da operação em outros poderes do Estado. Além disso, como disse Colombo, a indignação popular na Itália não acompanhou a população às urnas na eleição seguinte.

“Como dizia o grande Norberto Bobbio [filósofo, escritor e historiador italiano] ao analisar a Mãos Limpas, o eleitorado não correspondeu, na hora do voto, ao sentimento de comprovação da indignação causada pela operação na Itália. Se você pesquisa, todos achavam ótima a limpeza do país, mas o resultado foi a vitória do candidato [Berlusconi] considerado corrupto, que tem uma rede de apadrinhamento muito grande”, comentou Romano.

'Futurologia'

A ascensão de Michel Temer à presidência da República, em 2016, vem sendo marcada por uma mobilização da classe política em torno do “estancamento da sangria”, para citar uma fala do senador Romero Jucá (PMDB-RR) – um dos caciques mais influentes do partido de Temer – durante uma interceptação com o ex-presidente da Transpetro, Sérgio Machado. Nela, Jucá dizia ainda “Michel é [Eduardo] Cunha” e que o então vice-presidente seria a saída para barrar os avanços da Lava Jato contra a classe política.

Mudanças no Ministério da Justiça e as denúncias feitas por policiais federais a respeito dos cortes de recursos para a corporação – o que também afeta, em algum grau, a Lava Jato – formariam uma composição do movimento contrário à operação, que teve outros capítulos no Congresso Nacional, com o avanço de um projeto de abuso de autoridade (que atingiria magistrados), uma proposta pelo fim do foro privilegiado (que poderia tirar do Supremo Tribunal Federal uma infinidade de processo envolvendo políticos), e a desfiguração da proposta das 10 Medidas contra a Corrupção, sugerida pelo MPF e por setores da sociedade civil.

Para o sociólogo Celso Rocha de Barros, tal movimento da classe política contra a operação era esperado, porém os resultados disso ainda são incertos. Ele explicou que o Supremo vem dando mostras de que movimentos políticos nem sempre vêm conseguindo articular junto ao Judiciário ações a seu favor, mas que um efeito colateral que já vem se desenhando – a desorganização ainda maior do sistema partidário – pode gerar uma versão tupiniquim da Mãos Limpas.

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“A Lava Jato [e os seus avanços] pode até ser que o Judiciário segure, mas se os partidos políticos quebrarem, um Berlusconi aqui é quase certeza. Quanto maior a desorganização do sistema partidário, maior a chance de vencer o candidato mais rico. Acho que existe um risco real disso, é algo que me preocupa bem mais. É mais provável isso acontecer [em 2018] do que a Lava Jato ser interrompida”, ponderou.

A visão de que a política e seus principais atores, assim como foi na Itália, terá uma preponderância no Brasil quanto ao futuro da Lava Jato, é compartilhada pelo professor Roberto Romano. De acordo com o filósofo, a disparidade do poder central em relação aos municípios (estes sem recursos e dependentes da verba vinda de Brasília para suas políticas públicas) é algo que deveria ser atentado na tentativa de modificar as relações que construíram a corrupção da Lava Jato.

“Juízes, promotores e apoiadores da operação sonharam que o Estado brasileiro poderia ser mudado através dessas ações. Aí vem a impotência, porque você não pode assumir por meio de juízes e procuradores o poder do Estado e a sua totalidade do eleitorado […]. A moralização é importante, mas não dá conta do sistema todo. É preciso tocar no problema central, das eleições, da federação brasileira, da concentração de dinheiro na esfera federal. É mais amplo e complexo. Com o uso das armas que têm, [juízes e procuradores] agem muitas vezes de maneira arbitrária, achando que terão o apoio do eleitor. Acho que é um erro, como ocorreu na Itália. Sem mudar isso, e sem partidos realmente democráticos, você estará sempre enxugando gelo com toalha quente”, concluiu.

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