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Um milhão de pessoas sem teto: população em situação de rua expõe crise social na Europa

© AP Photo / Francois MoriMulher caminha na rua ao lado de uma tenda para sem-teto, em Paris. França, 21 de dezembro de 2021
Mulher caminha na rua ao lado de uma tenda para sem-teto, em Paris. França, 21 de dezembro de 2021 - Sputnik Brasil, 1920, 13.12.2023
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Em entrevista ao podcast Mundioka, especialistas analisam a crise econômica e social na União Europeia que elevou drasticamente o número de pessoas sem teto em países do bloco.
Um relatório publicado no início deste mês pela Federação Europeia de Associações Nacionais que Trabalham com os Sem-Abrigo (FEANTSA, na sigla em francês), uma organização não governamental, expôs o fracasso de países da União Europeia (UE) em lidar com o crescente aumento da população de rua.
De acordo com o relatório, pelo menos 896 mil pessoas dormiram nas ruas em países do bloco europeu em 2022. No ano passado, países da UE se comprometeram a zerar a população sem-teto até 2030. Porém, segundo o documento, apenas Finlândia e Dinamarca alcançaram progresso até agora.
Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, Rafael Tsavkko, jornalista e doutor em direitos humanos, e Estevão Chaves de Rezende Martins, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), analisam por que a Europa ainda patina no que diz respeito à elaboração de políticas habitacionais.
Para Tsavkko, o fato de a Europa registrar quase 1 milhão de pessoas em situação de rua é um marco preocupante. Ele destaca que os números são subestimados e que existem várias categorias de pessoas sem-teto.
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"Desde quem efetivamente vive em situação de rua todo o tempo, pessoas com emergência de acomodação, que não conseguem encontrar acomodação sempre, ficam vagando de um lado para o outro, até o que a União Europeia chama de pessoas que vivem de forma não convencional ou temporal na casa de alguém, família, amigos, conhecidos, mas sempre com o perigo de serem despejados. Então são algumas categorias, e esse número de 1 milhão é bastante conservador."

Ele diz que a Irlanda ilustra bem o problema vivenciado pela UE, argumentando que o país tem um problema muito grave de pessoas que vivem temporariamente na casa de outros, por uma crise tremenda de moradia e aumento de preços. "Muitos trabalhadores acabam sendo expulsos de casa, não conseguem pagar prestações ou aluguel e acabam vivendo com família, amigos, às vezes em situações longe do ideal."
Segundo Tsavkko, há situações parecidas com a da Irlanda em muitos países da Europa, apesar de existirem especificidades. Um dos problemas, segundo o especialista, é a popularização do Airbnb em cidades turísticas, que contribuiu para elevar os preços dos aluguéis. "Em outros países não existe espaço útil para construir, é um problema, por exemplo, no norte da Espanha, no País Basco."
A situação é agravada pela proximidade do inverno europeu, que traz temperaturas abaixo de zero e neve.

"No norte da Espanha é muito comum, e em algumas partes da França, [um problema] chamado pobreza energética. Pessoas que apesar de terem casa, apesar de terem a possibilidade de ligar o aquecimento no inverno, não podem porque não têm dinheiro para pagar, às vezes nem para manter a luz de casa acesa durante a noite. Então, se […] [isso] já é um problema, você tem casos de idosos que morrem, pessoas que vão para o hospital com problemas respiratórios por não poderem ligar o aquecimento, imagine morando na rua."

Ele afirma que os abrigos para a população de rua, por vezes apontados como solução, "nunca são suficientes". "Em cidades maiores é uma dificuldade tremenda, a gente sabe que abrigos nem sempre são ideais também, não permitem a mesma liberdade que uma pessoa teria na sua própria casa ou mesmo na rua, então é sempre um perigo quando o inverno chega."
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Tsavkko cita percentuais levantados por estudos que analisaram os motivos que levaram pessoas a viverem nas ruas em países da UE.

"Mais ou menos 96% das cidades europeias tinham pessoas em situação de rua por problemas de abuso de substância, 92% por não poderem pagar um aluguel pelo alto preço, 88% por fundos insuficientes para se sustentar e 79% por problemas mentais. Então em 79% das cidades europeias você tem pessoas em situação de rua que têm problemas de saúde ou problemas mentais inclusos, que é a mesma porção de pessoas que acabam na rua por serem vítimas de violência doméstica, traumas familiares e problemas familiares."

Tsavkko acrescenta que a crise econômica é outro agravante no retrocesso dos índices sociais na Europa.
"O que a gente vê na Europa é que a situação vem se deteriorando ano após ano, os índices sociais vêm caindo, qualidade geral da saúde, aumento da violência, crescimento de desemprego. O número de moradores de rua obviamente vai aumentar por isso, e cada crise que vem é uma nova leva de pessoas que acabam sendo jogadas na rua, na marginalidade, na indigência."
Questionado sobre o que levou Finlândia e Dinamarca a obterem sucesso na redução da população em situação de rua, Tsavkko diz que ambos os países "têm uma vantagem muito grande, que é ter uma população pequena".
"Obviamente, quanto maior a população, você tende a ter mais problemas para lidar, para gerenciar a sociedade como um todo. Mas Dinamarca e Finlândia são duas sociedades que são muito focadas em social, muito focadas em encontrar soluções para problemas sociais. Eles investem muito pesado em educação, em apoio à paz, a parentes e à integração. A Finlândia tem projetos bastante interessantes de integração social."

Dados da população sem-teto derrubam mito da superioridade europeia

Estevão Chaves de Rezende Martins argumenta, em entrevista ao podcast Mundioka, que a atual situação na UE é fruto de "um problema conjuntural que se agravou depois da crise da pandemia, combinada com a onda de imigrantes de todos os tipos e refugiados que vieram do norte da África, ou do Leste [Europeu], ou do Oriente Médio".
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"Sobretudo da região em conflito em torno da Síria e na Síria, que ficaram conhecidos com as travessias dramáticas do Mediterrâneo. Sem contar que, obviamente, a pandemia provocou uma queda de renda em muitas camadas mais vulneráveis das diferentes sociedades."

Para o professor, o número de pessoas vivendo em situação de rua na Europa, apontado pelo relatório da FEANTSA, é proporcional à população do continente. Ele afirma que os números chamam atenção por quebrar a imagem cultivada da Europa como um lugar com condições de vida superiores.

"Gera uma certa estranheza, inclusive porque a gente tem sempre a ideia de que o meio de vida e a média de vida europeia sempre estariam em um patamar muito superior ao que nós conhecemos na América do Sul e no Brasil. Isso faz com que haja, digamos assim, uma frustração. Meio século depois dos grandes programas sociais europeus terem alcançado um grande sucesso, ao final da famosa época dos Trinta Gloriosos, você ainda tem uma franja de pessoas que sobrevivem na rua."

Ele acrescenta que há "problemas que são muito parecidos com os que se encontram no Brasil e em outros países análogos".
"Há muitas pessoas que estão em situação de rua porque têm problemas de saúde, seja física, seja mental, e não conseguiram atendimento suficiente para controlar isso, e frequentemente são afastados por seus próprios parentes ou se afastam dos seus parentes, e isso cria obstáculos à intervenção dos serviços sociais."
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Para Martins, de certa maneira, a questão da população sem-teto na Europa é uma faceta de um problema ainda maior.

"A crise no custo da moradia, combinada com a perda de emprego remunerado, que, infelizmente, é coisa que acontece com um bocado de gente, pode acarretar um incremento, digamos assim, por etapas ou por épocas, das pessoas que se encontram sem renda e que não têm mais como pagar aluguel. Ou não têm mais como pagar o gás, a água, a eletricidade, e, por consequência, não lhes sobra escolha, e frequentemente elas são despejadas das moradias originárias ou [forçadas a] ir para abrigos ou para a rua."

Martins aponta que a deterioração dos índices sociais na Europa é, atualmente, o grande problema enfrentado pelo continente.
"O principal problema da Europa é, agora, preservar as fontes de financiamento para garantir o abastecimento energético, de que depende uma quantidade imensa de coisas, a começar a produção da eletricidade e de gás. Então o problema social tem dois grandes aspectos. Primeiro, tentar resolver um programa, digamos assim, corajoso e ousado de moradia social. Há, inclusive, diferentes países que tomam iniciativas restritivas para pessoas que possuam investimentos imobiliários e não os coloquem à disposição do sistema locativo", explica Martins.
Martins afirma que há na França disposições legais para coibir proprietários de casas de promoverem especulação imobiliária. Segundo ele, esses proprietários moram em uma residência e possuem outras casas, mas não as colocam para alugar.

"Há na França, notadamente, disposições legais que impõem [ônus] ao proprietário de casas que não estão ocupadas porque ele mora na dele, mas não bota o resto para alugar porque está querendo ganhar mais dinheiro com a manipulação dos aluguéis. Se o apartamento ou o alojamento ficar vazio para além de um determinado prazo, começam a ser impostas multas ou taxas de desocupação, para ver se empurram as pessoas a oferecerem esses alojamentos no mercado de locação."

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O aumento do desemprego é um dos elementos que contribuíram para o alto número de pessoas em situação de rua na Europa. Questionado sobre se o desemprego atinge mais imigrantes ou europeus, Martins diz que a estatística não distingue, mas acrescenta que "qualquer pessoa de bom senso entende que um imigrante recém-chegado, que vem de um país que não fala a língua local, que frequentemente tem outra cultura, outra aparência física, não é empregado da noite para o dia com a rapidez que até os próprios locais às vezes não conseguem".
Ele afirma que isso reflete também no aumento da xenofobia, já que em muitos países a população local acredita que a entrada em massa de imigrantes e refugiados reduz as oportunidades de trabalho da população local e leva o governo a criar políticas de acolhimento que pressionam as contas públicas.

"Muitos locais acham que se houver uma inundação de imigrantes e refugiados, os governos vão criar políticas de proteção, o que é relativamente normal na prática internacional. […] E aí os mercados de trabalho, obviamente, não absorvem todo mundo assim, com um estalar dos dedos. [Isso] faz com que muitos locais considerem que a chegada dessas pessoas seja uma ameaça, que eles próprios poderiam perder os seus empregos se essa massa de pessoas vier a ser concorrente deles no mercado de trabalho."

No entanto, ele acrescenta que um fenômeno curioso é que o imigrante, geralmente, "se dispõe a fazer trabalhos, sobretudo trabalhos manuais, pesados e humildes, que os locais já há muito tempo não querem mais fazer".
Assim como Tsavkko, Martins credita o sucesso de Finlândia e Dinamarca na redução da população sem-teto à proporção demográfica desses países, mas também aponta "a capacidade financeira de suportar políticas públicas" de acolhimento e integração.
"A Finlândia, a Dinamarca e a Suécia são países de proporções menores, com estabilidade política no governo, com uma certa capacidade financeira de pagar a conta. […] Eu não conheço, agora, o detalhe de quantos, por exemplo, da eventual antiga população de rua finlandesa eram finlandeses ou de população imigrada. Mas é proporção. É um país proporcionalmente muito pequeno, comparável mais com a Holanda e com a Bélgica, embora as populações belga e holandesa sejam maiores, e tem uma política local com capacidade de estabelecer programas de absorção das pessoas, do ponto de vista social, cultural, econômico, no mercado de trabalho e sanitário, para dar-lhes condições de vida decentes, que os outros países não têm."
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