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Terrorista ou insurgente: qual a nomenclatura correta para o Hamas?

© AP Photo / Yousef MasoudMilitantes do Hamas durante incursão ao território israelense. Israel, 7 de outubro de 2023
Militantes do Hamas durante incursão ao território israelense. Israel, 7 de outubro de 2023 - Sputnik Brasil, 1920, 25.10.2023
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À Sputnik Brasil, especialistas analisam o que é necessário para que um grupo seja considerado terrorista, com base no direito internacional, e explicam por que a Organização das Nações Unidas (ONU) e o governo brasileiro não adotam a classificação em relação ao Hamas.
O Hamas é um grupo terrorista ou insurgente? A classificação gera controvérsia ao redor do mundo e já envolveu o governo brasileiro, que, seguindo a posição da ONU, não classifica o grupo como terrorista.
Para entender o que diz o direito nacional sobre a nomenclatura e o que é necessário para que um grupo seja considerado terrorista ou insurgente, os jornalistas Melina Saad e Marcelo Castilho, do podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, conversaram com o coronel da reserva do Exército Carlos Frederico Cinelli, autor do livro "Direito Internacional Humanitário", e Lucas Mendes, especialista em assuntos internacionais e dono do canal Geopolítica Hoje.
Questionado se as ações das Forças de Defesa de Israel (FDI) contra palestinos na Faixa de Gaza ferem o direito internacional humanitário, Carlos Frederico Cinelli diz que, primeiro, é necessário distinguir direitos humanos do direito internacional humanitário.

"Direito internacional humanitário não é sinônimo de direitos humanos. Direitos humanos são um ramo do direito […] presente de modo permanente em quaisquer situações, em tempo de paz, em tempo de conflito. Direito internacional humanitário é sinônimo de direito internacional de conflitos armados, ou seja, um direito de exceção que se aplica a situações fáticas de conflitos armados", explica o especialista.

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Ele acrescenta que algumas ações observadas no campo de batalha podem, em tese, caracterizar graves violações às Convenções de Genebra, ou seja, "configurarem delitos que estão sob o chapéu do Tribunal Penal Internacional [TPI], em especial crimes de guerra e possivelmente alguns crimes contra a humanidade".

"Nós não podemos descartar delitos cometidos pelo grupo Hamas, como o sequestro e a manutenção em cárcere privado de pessoas e a questão dos atos de terror. Mas sim, há violações claramente verificadas por ambas as partes e há preocupação da comunidade internacional no sentido de que isso possa escalar para um conflito mais generalizado na área."

Ele afirma que o fato de grupos terroristas armados e não estatais não terem assinado tratados internacionais não os isenta de cumprir os chamados costumes da guerra.
"Desde sempre, analisando inclusive batalhas e rituais de combate muito primitivos na Antiguidade, sempre havia a preocupação de poupar determinadas categorias de pessoas, de civis. Lamentavelmente, isso não está sendo respeitado com a importância que deveria."
Sobre o cerco de Israel à Faixa de Gaza, que vem bloqueando o acesso à água, alimentos e combustíveis, entre outros itens de necessidades básicas, Cinelli explica que "nenhum tratado internacional obriga comandantes a evacuarem civis de áreas de perigo".

"Entretanto, deixar esses civis deliberadamente expostos às flutuações da guerra, aos perigos dos ataques, é sim uma violação. Os comandantes precisam demonstrar objetivamente uma preocupação em não deixar os civis expostos às agruras dos combates."

Ele acrescenta que isso pode ser feito de duas maneiras. Primeiro, dando um alerta oportuno, um alerta antecipado.
"É o chamado princípio da precaução, avisando antecipadamente que aquela área […] selecionada como objetivo militar será atacada, e [dar] a chance de os civis poderem abandonar aquela área. O alerta antecipado é consagrado na doutrina e nos tratados como um meio objetivo de externar a preocupação do comandante", explica o especialista.
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Ele ressalta que o alerta deve ser acompanhado da permissão de saída dos civis das áreas selecionadas para o ataque.

"Não adianta dar o alerta e impedir a saída [dos civis]. Então, quando você faz uma incursão numa localidade, numa cidade, uma das fases da incursão, da manobra militar de conquista daquela localidade, é você fazer o isolamento da cidade, que a gente chama de cerco do ponto de vista militar, em que você ocupa um cinturão no entorno […], mas deixando passagens para a saída de civis, a entrada de alimentos, água, medicamentos."

Ele afirma que bloquear as saídas de uma região alvo de ataque e impedir a entrada de itens de primeira necessidade deixa de ser um cerco e passa a configurar um estado de sítio.

"Aí sim é um problema. Porque o sítio, diferentemente do cerco, pode ser tipificado como um crime de guerra à luz do artigo 8º do Estatuto de Roma. Há um inciso nesse tratado que caracteriza que impedir a saída de civis deliberadamente, induzindo a fome, a inanição e as privações é uma grave violação."

Sobre a classificação de um grupo ou Estado como terrorista, Cinelli diz que isso depende das leis internas de cada Estado usadas para tipificar o que seria terrorismo.
"Os Estados Unidos, por exemplo, definiram, depois do 11 de setembro, a questão do terrorismo doméstico. O Brasil — por conta dos grandes eventos, principalmente as Olimpíadas, preocupado não tanto com o Brasil ser alvo de ataques terroristas, mas ser palco de ataques terroristas — acabou passando uma lei que define o que seria esse delito. Mas internacionalmente não existe uma definição", explica Cinelli.
Ele explica que a causa principal para que não exista uma definição única do que é terrorismo "é que, muitas vezes, o terrorista de uma parte, na verdade, é visto como o soldado da liberdade da outra parte".

"Aqueles que têm motivações que vão desencadear ações terroristas muitas vezes estão movidos por motivações que são justificadas por uma luta de liberdade ou […] para deixar de ser ameaçado por uma autoridade, por autodeterminação em geral."

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O especialista afirma que, muitas vezes, o conceito de terrorismo é definido pela intensidade e cita como exemplo os recentes ataques de criminosos a ônibus no Rio de Janeiro, em retaliação à morte de um miliciano. O caso vem sendo definido pela lei brasileira como terrorismo, diferentemente do que acontece com o Hamas, que não recebe essa classificação do Brasil.
Cinelli explica que isso ocorre porque, no plano internacional, o Brasil segue a definição e o critério da ONU, que não classifica o Hamas como grupo terrorista.

"Então, qual é a diferença entre uma facção criminosa do Rio de Janeiro e um grupo armado não estatal do padrão do Hamas? São duas. […] Primeiro, o nível de intensidade. É muito diferente você ver uma pessoa numa comunidade alvejada, lamentavelmente alvejada com uma bala perdida de um criminoso, do que verificar em uma rave que, de repente, um grupo entrou e matou 260 pessoas. O nível de intensidade das hostilidades é muito mais alto. […] transformar em cinzas um bairro inteiro, por exemplo, com bombardeio, como a gente vê em conflitos mundo afora."

Segundo o especialista, outro critério para a classificação de um grupo como terrorista é a organização.
"Tem que ter uma cadeia de comando, capacidade de falar uma só voz. O Hamas tem um porta-voz. Ele traz informações consolidadas, alinhadas dentro da administração do grupo, caracterizando a posição convergente do grupo nos principais quesitos. Tem que ter uma sede, uma base, muitas vezes, física. Se houver uma vertente política, isso reforça esses critérios."
Lucas Mendes, dono canal Geopolítica Hoje, compartilha da opinião de Cinelli sobre o Brasil seguir a cartilha da ONU ao não classificar o Hamas como grupo terrorista.
Ele destaca que, para que o Hamas seja considerado pela ONU como um grupo terrorista, é preciso que a definição seja aprovada por todos os membros do Conselho de Segurança da organização.
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"A gente sabe que existem discordâncias hoje — na verdade, há algum tempo — insolúveis dentro do Conselho de Segurança, e a própria questão do poder diverso dificulta esse tipo de classificação do Hamas. É importante a gente lembrar também que o Hamas é um partido político palestino, que tem um setor administrativo que é separado das brigadas armadas. Há duas brigadas armadas [dentro do Hamas], então existe toda uma discussão sobre a classificação. Isso não foi aceito no Conselho de Segurança da ONU por todos os membros, e é por isso que o Brasil não classifica o Hamas como um grupo terrorista."
Mendes explica que, por conta das diferentes visões sobre o que é terrorismo, a classificação do Hamas como um grupo terrorista não faria diferença do ponto de vista do conflito com Israel. Porém, seria um grande golpe midiático que abalaria a legitimidade do grupo.

"Teria um peso por conta dessa questão midiática e, também, por conta do tipo de negociação que isso poderia gerar. Um grupo terrorista, amplamente reconhecido pelo Conselho de Segurança da ONU, daria a Israel muito mais legitimidade para realizar ações ofensivas, ações de mais violência [em sua ofensiva na Faixa de Gaza]; a comunidade internacional daria mais respaldo."

O especialista aborda as controvérsias recentes envolvendo Lula e o secretário-geral da ONU, António Guterres: o primeiro por classificar como terrorismo as ações do Hamas do dia 7 de outubro, mas não classificar o grupo como terrorista; o segundo por afirmar, em uma sessão da ONU, que o ataque do Hamas ocorreu após mais de cinco décadas de ocupação sufocante perpetrada por Israel.
"O senhor António Guterres fez esse comentário primeiro porque, de fato, o que a gente está vendo é uma comprovação numérica, com dados estatísticos, apontando que Israel está usando uma força muito maior do que o Hamas seria capaz de usar, ou qualquer grupo palestino contra a Faixa de Gaza e contra a população palestina. Então, existe bastante espaço, na minha visão, para condenar essas ações israelenses."
Ele finaliza afirmando que considera importante a decisão do governo brasileiro de classificar os atos do Hamas como terrorismo.
"O governo brasileiro tem tomado essa posição desde o início, condenou a ação do Hamas, como a gente já comentou aqui, não classifica, sim, o Hamas [como grupo terrorista] por uma questão tradicional da diplomacia brasileira. O Brasil que é afeito àquela tradição do multilateralismo, então procura seguir o direito internacional, e não classifica o Hamas como um grupo terrorista porque o Conselho de Segurança não o faz. É uma postura até legalista, mas acho importante, sim, o governo brasileiro classificar o atentado como um ato terrorista."
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