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Escravidão moderna nos EUA? Mazelas não podem ser desculpa para exploração infantil, diz professor

© AP Photo / Patrick SemanskyDepartamento de Trabalho dos Estados Unidos, em Washington, D.C.
Departamento de Trabalho dos Estados Unidos, em Washington, D.C. - Sputnik Brasil, 1920, 13.09.2023
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Junto com o aumento da exploração ilegal de mão de obra infantil nos EUA, vários estados do país têm buscado flexibilizar as regras para contar formalmente com mais crianças e adolescentes no mercado de trabalho.
A Sputnik Brasil ouviu dois especialistas a respeito da nova estratégia norte-americana para lidar com o mercado de trabalho em alguns estados da federação: contratar crianças e adolescentes.
© AP Photo / Damian DovarganesCentro de empregos em Pasadena, na Califórnia, Estados Unidos
Centro de empregos em Pasadena, na Califórnia, Estados Unidos - Sputnik Brasil, 1920, 13.09.2023
Centro de empregos em Pasadena, na Califórnia, Estados Unidos
Muitos estados dos EUA estão flexibilizado suas leis trabalhistas, em uma tendência que, segundo pesquisadores, reflete um esforço coordenado de vários setores para expandir o acesso dos empregadores à mão de obra barata e enfraquecer as leis sobre o trabalho infantil.
A nova legislação de Iowa, por exemplo, considerada uma das mais radicais, permite que os empregadores contratem adolescentes a partir dos 14 anos para trabalhos perigosos em lavanderias industriais, anteriormente proibidos, ou a partir dos 15 anos para trabalhos leves de montagem; permite que agências estatais renunciem às restrições sobre trabalhos perigosos para jovens de 16 a 17 anos em uma longa lista de ocupações perigosas, incluindo demolição, manutenção de telhados, escavação e operação de máquinas motorizadas; estende o horário para permitir que adolescentes a partir de 14 anos trabalhem em turnos noturnos de seis horas durante o ano letivo; permite que os restaurantes tenham adolescentes de até 16 anos servindo bebidas alcoólicas; e limita a capacidade das agências estatais de imporem penalidades a violações do empregador.
Uma grande reversão do trabalho infantil entra em vigor em Iowa neste fim de semana. Agora os jovens de 14 anos podem trabalhar em refrigeradores de carne, os de 15 anos podem ingressar nas linhas de montagem e os de 16 anos podem servir bebidas alcoólicas. Em poucas semanas, reversões semelhantes entrarão em vigor no Arkansas.
Em todo o país, milhares de violações foram relatadas neste ano envolvendo crianças e adolescentes. Pelo menos três mortes foram registradas, no Mississippi, no Missouri e em Wisconsin. O Departamento de Trabalho dos Estados Unidos já verificou um aumento de 44% no número de menores trabalhando em situação irregular em relação ao ano passado. Os casos já somam 4.474.
Na tentativa de legalizar essas situações que hoje configuram abusos, os legisladores têm apresentado cada vez mais projetos. Ao menos 14 estados americanos já teriam apresentado propostas que retiram proteções contra a exploração de menores pelo mercado de trabalho.
Segundo o professor de direito Jean Menezes de Aguiar, da Fundação Getulio Vargas (FGV), o discernimento da criança é diferente do discernimento do adulto, que envolve maturidade e compenetração com o risco, experiência e profissionalismo. Enquanto no Brasil o contrato de aprendizagem envolve pessoas entre 14 e 24 anos de idade, porém obrigatoriamente inscritas em programa de formação técnico-profissional, com toda uma fiscalização exigente, nos EUA tenta-se empregar mão de obra infantil em diferentes áreas, com cada vez menos proteção.

"A criança, genuinamente, é para estar em um processo escolar de crescimento como cidadã e pessoa", comenta Aguiar.

No caso dos Estados Unidos, a situação se complica também, de acordo com o especialista, pelo fato de haver uma autonomia maior dos estados em relação ao governo federal, o que permite que alguns entes federados busquem normalizar certas situações mais extremas.
Com todo um esforço internacional para a eliminação do trabalho infantil, parece ficar claro que alguns estados dos EUA "estão seriamente equivocados", argumenta o professor.

"Há, sim, consenso entre grandes democracias, inclusive as europeias, sobre o trabalho infantil como algo péssimo, mas, às vezes, alguns lugares dos Estados Unidos parecem querer ser diferentes. E conseguem. As mazelas da pobreza e a falta de educação não podem ser uma desculpa para o trabalho infantil. Pode estar em jogo o que se chamaria de 'escravidão moderna'. Verdadeiramente uma lástima."

De acordo com a Organização Internacional do Trabalho, o ramo que mais explora o trabalho infantil é a agricultura, com 70,9% dos casos, seguido pelo setor de serviços, com 17,1%, e pela indústria em geral, com 12%.
Para Aguiar, é muito complicado definir o que seria um tipo de trabalho infantil tolerável, bem como a carga horária. Primeiramente, ele afirma, haveria que se idealizar um piso etário mínimo, por exemplo só poder trabalhar pessoas com 14 anos ou mais. O ordenamento jurídico brasileiro é muito avançado nessa matéria e pode ser um ótimo paradigma, segundo o professor.
"A Constituição (art. 7º, XXXIII) proíbe o trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de 18 anos. A CLT, a partir do artigo 424, regula o tema sob a ótica trabalhista, severamente. E o Estatuto da Criança e Adolescente reconhece como direito fundamental a convivência familiar e comunitária à criança e adolescente. Dizer que isso tudo é utopia será um simplismo e, em segundo lugar, menosprezar a infância, que precisa ser seriamente protegida."
O especialista destaca a importância de cuidar de um ambiente de trabalho para que um menor possa conviver, além da necessidade de obedecer à lei no sentido de permitir o estudo e a vida escolar do menor.
"A CLT, art. 432, limita o trabalho do menor a seis horas por dia, e o contrato não pode ultrapassar dois anos. Por essas normas, tem-se uma situação muito diferente da de quando se fala em trabalho infantil, em regra precarizado e ilegal. Então o ideal é sair da precarização e ilegalidade para um sistema efetivamente normativo, mas, principalmente, respeitoso e protetivo da criança."
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Embora o Brasil não esteja discutindo legislações polêmicas visando à exploração da mão de obra infantil, o país também enfrenta importantes desafios no que diz respeito à proteção das crianças e adolescentes na prática. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicam que cerca de 3 milhões de jovens brasileiros, que deveriam estar estudando, se encontram no mercado de trabalho.
Para Aguiar, esse é um tormento social que deveria estar sendo enfrentado de uma maneira mais séria e mais ampla, mas o fato de existir uma legislação adequada para tratar o tema já ajuda bastante.
"O nosso ordenamento jurídico é severo, o que já é um alívio. Pelo menos no plano formal temos uma blindagem de proibição que em muitos casos funciona muito bem."
Também professor de direito na FGV, Paulo Renato Fernandes da Silva vê com estranhamento a ideia de flexibilizar a participação de crianças no mercado de trabalho nos Estados Unidos, país que é membro da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

"A convenção 138 da OIT diz que todos os países só podem admitir trabalho após o término do ensino obrigatório ou, no mínimo, a partir dos 15 anos, excepcionalmente a partir dos 14. Aqui no Brasil, a nossa Constituição estabelece que a idade mínima para o trabalho é de 16 anos, como aprendiz, e o empregado especial é a partir dos 14 até os 24", comenta.

"Local de criança é na escola ou no lazer, na cultura. O ofício da criança é brincar, e não trabalhar. Ela vai ter a vida toda depois para trabalhar. Agora é um momento de formação, constituição cognitiva, física da criança. Isso tudo não pode ser prejudicado pelo trabalho. Eu vejo de forma muito cética a possibilidade de colocar crianças trabalhando. Essa regra me parece bem irrazoável."
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