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Crise na América Latina: caos econômico na região tem ideologia de esquerda ou direita?

© Sputnik / Vladimir Astapkovich / Acessar o banco de imagensMacri durante a cúpula dos Brics, em 2018.
Macri durante a cúpula dos Brics, em 2018. - Sputnik Brasil
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Após assumir o poder com a promessa de retomar o crescimento da Argentina, o governo de Mauricio Macri se encontra assolado por uma crise cambial sem precedentes e enfrentou nesta semana a 4ª greve geral do seu mandato. A Sputnik Brasil faz uma análise sobre as causas desta crise e coloca em perspectiva outros cenários de caos econômico da região.

Se nos últimos meses o noticiário foi inundado com os efeitos devastadores do caos político e econômico vivido pela Venezuela, tendo como estopim a onda migratória de venezuelanos que se espalharam pelos países vizinhos do continente em busca de melhores condições de vida, a brusca aceleração da crise argentina provocou uma curiosa e inglória situação na região: os mais de 70 mil venezuelanos, segundo estimativas oficiais, que chegaram à Argentina nos últimos meses em busca de refúgio, encontraram um país em pleno caos econômico, com o disparo da inflação, abrupta desvalorização da moeda e um desemprego em alta. 

​Ainda que esteja longe do abismo econômico e social em que se encontra a Venezuela, a Argentina vive uma das mais graves crises da sua história recente e enfrenta uma profunda desconfiança tanto dos investidores quanto da própria população, gerando uma profunda instabilidade no país. A Sputnik Brasil conversou com especialistas e traz uma análise sobre como os países que estão em polos opostos no espectro ideológico e político dividem hoje o pódio dos piores desempenhos econômicos da América Latina este ano. 

O caso argentino: herança maldita ou maldição do liberalismo?   

Assolada por uma grave crise cambial, a Argentina vivenciou nesta semana a quarta greve geral do governo Macri, que parou serviços e transportes em todo o país, afetando mais de 15 milhões de pessoas. O cenário é realmente desalentador para a população argentina, como destaca o economista argentino e professor da UFRJ, Eduardo Crespo, em entrevista à Sputnik Brasil: 

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"Nesse momento há uma crise econômica em andamento muito pesada, com a desvalorização do peso muito grande. Só para dar uma ideia, o peso passou de um patamar de 20 pesos por dólar para 40 […] é uma situação muito complicada com uma queda do salário real, que deve estar em volta de 10%", afirma o especialista, acrescentando que a grande desvalorização do peso tem uma repercussão inflacionária grande, com uma aceleração da inflação projetada para o ano perto de 40-50%.

"Durante todo o ano de 2016 e 2017 houve um fortíssimo momento de endividamento público em dólares com uma administração muito ruim do Banco Central. O jeito que o Banco Central estava gerindo a política monetária, a fixação da taxa de juros, até as intervenções cambiais foram todas muito erradas, e com o endividamento público crescente. Quando os investidores começaram a ter dúvidas sobre a capacidade de pagamento da Argentina, já estava com um déficit de conta corrente muito grande, com juros que estavam crescendo a taxas altas, dava para ver que era uma situação insustentável", acrescentou Eduardo Crespo. 

Já o professor de Relações Internacionais da UERJ e pesquisador do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI), Paulo Velasco, em entrevista à Sputnik Brasil, atribuiu a crise econômica argentina em grande parte a um acúmulo de problemas do governo anterior, mas que, somados a uma não eficiência das medidas de ajuste fiscal, provocaram uma desestabilização do país. 

"Há uma série de problemas que vêm do governo anterior que a gente não pode atribuir em hipótese alguma ao Macri. Mas o Macri foi eleito como o salvador da pátria, como o homem de negócios que seria capaz de encontrar a fórmula mágica que tiraria a Argentina do buraco, buraco em que ela está metida desde 2000 e 2001, não é uma coisa de agora. No início parecia que ia dar certo […] mas do ponto de vista econômico, os remédios amargos que o Macri adotou e vem adotando não estão surtindo efeito. Amargos inclusive junto à sociedade", observou. 

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Eduardo Crespo citou o Brasil como exemplo na maneira com que a Argentina buscou encontrar uma estabilização e um ajuste fiscal, impondo uma série de reformas impopulares, como a flexibilização dos direitos trabalhistas e a reforma previdenciária, que provocaram o desagrado da sociedade. 

"Como resposta a essas medidas impopulares que ele [Macri] adotou, esperava-se que pelo menos houvesse a contrapartida macroeconômica, a estabilidade, e isso não veio. Daí ele teve que recorrer ao que de uma maneira é um atestado quase que de morte, que é recorrer ao FMI, porque você de alguma maneira renuncia em alguma medida à gestão soberana da política macroeconômica em troca daquela garantia de recursos, tendo que seguir à risca as receitas monetaristas do FMI", acrescentou o especialista. 

A agonia venezuelana

É inegável a atual situação de agonia vivida pela economia e a política venezuelana. Com uma expectativa de inflação que pode chegar a 1.000.000% até o final do ano, a crise do país já ultrapassa fronteiras com uma forte onda migratória de pessoas que fogem da Venezuela em busca de melhores condições de vida nos países vizinhos. 

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O número de refugiados que se espalharam pelos países da América Latina nos últimos 2 anos ultrapassa a marca de 2 milhões de pessoas. 

O professor Paulo Velasco identifica que uma coisa que une Brasil, Argentina e Venezuela, tanto no sucesso econômico do início do século quanto na deterioração dos indicadores, é o cenário internacional, sobretudo em relação ao preço das commodities.  

"Temos que reconhecer que as políticas que deram certo na Venezuela por um tempo, pensando no ápice do governo de Hugo Chávez, um sucesso extraordinário, com um impacto social importante em relação à redução da pobreza, da fome, elas viram caudatárias especialmente num cenário de boom das commodities", argumenta o especialista. 

"Temos ali uma realidade internacional, que favoreceu o Brasil de Lula, a Argentina do casal Kirchner, em que as commodities bateram recorde atrás de recorde de preço na cena internacional, e a Venezuela, como a gente sabe, sofre de doença holandesa, que só vive basicamente da exportação de hidrocarbonetos. E enquanto o petróleo batia recorde atrás de recorde na esteira do 11 de setembro e da Guerra do Iraque, o país vivia muito bem e tinha recurso de sobra", observa. 

De acordo com Velasco, o grande fracasso de Chávez foi a dificuldade de alcançar uma diversificação da estrutura econômica e produtiva da Venezuela, além "dos excessos em termos de repressão, banir opositores e surtos antidemocráticos que agravaram muito no final do governo dele, e com o Maduro".

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O especialista frisa, no entanto, que os problemas associados ao fato de a Venezuela não conseguir sair da posição de ser uma economia rentista, dependente da venda de petróleo, não podem ser considerados sob um ponto de vista ideológico, tendo em vista que outros governos de centro e centro-direita que governaram o país durante décadas também vivenciaram o mesmo fracasso. 

"Seja Chávez, sejam aqueles de uma linha ideológica completamente distinta que o antecederam, esbarravam na impossibilidade de conseguir diversificar a economia do país", afirma. 

Assim, o professor de Relações Internacionais identifica que, em oposição à política econômica argentina, por exemplo, o modelo de excessiva estatização na Venezuela é um ponto de gargalo para o desenvolvimento da economia do país, o que se agrava no governo de Nicolás Maduro. 

"A Venezuela tem máquina toda envolvida por trás, a PDVSA [empresa estatal de petróleo venezuelana] é muito pesada, há um aparelhamento muito significativo da PDVSA no governo Chávez e continuou com o Maduro. Isso retirou competitividade em termos de mercado, e aí sim, a ideologia talvez justifique. Com essa lógica estatizante há um problema de gestão importante e crônico com a PDVSA que se agrava com o governo Chávez e com o governo do Maduro", destaca. 

"Com o Maduro tudo isso se agrava, junto com o preço do petróleo. Imagina um cara que não tem popularidade, não tem carisma, não tem a ascendência que Chávez tinha inclusive junto a outros atores internacionais, países africanos e latino-americanos. Chávez tinha estofo, podemos dizer, Maduro não tem estofo político nenhum. E ademais, é claro, a produção doméstica se deteriorando", completa. 

Ideologia como variável da crise

Tendo em vista as distintas causas das graves crises econômicas dos países da América Latina, podemos identificar algumas variáveis em comum, como a má gestão dos recursos públicos, o cenário internacional mais ou menos favorável ou o acúmulo de problemas herdados de governos anteriores.

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Mesmo com as particularidades do ponto de vista político-ideológico que se somam à equação das catástrofes econômicas, o professor Paulo Velasco argumenta que as políticas macroeconômicas com viés de esquerda ou de direita  contribuem para a deterioração de uma situação econômica, dependendo do caso, mas, no caso dos exemplos mais graves, não são suficientes para explicar ou justificar tal situação de colapso da economia. 

O professor de Relações Internacionais da UERJ considera que "a dimensão político-ideológica é mais uma variável, mas não pode ser a única nessa equação, se a gente quiser uma resposta com resultado satisfatório". "Eu acho que há sim, claro, alguns desmandos e excessos não só na Argentina, mas na política americana de uma maneira mais ampla. Na América Latina, seja a direita, seja a esquerda, a gente vê manobras macroeconômicas para lá de censuráveis", acrescenta.  

Ao identificar alguns problemas da estreita aproximação de Macri com o mercado, e como isso não trouxe retorno de estabilidade para o país, Paulo Velasco cita o Brasil como exemplo dos primeiros anos do governo do PT, em que havia um claro alinhamento histórico com um viés de esquerda, mas que a política macroeconômica se manteve com a ortodoxia do governo antecessor. 

"Essa ideia de se associar tão intimamente ao mercado, assumir uma postura tão subserviente com os fundos de abutres, a própria lógica do FMI, e aceitar o receituário amarguíssimo que o FMI impõe à Argentina. Claro que existe um componente ideológico, que seria inaceitável, por exemplo, no governo do Nestor e da Cristina Fernández [Kirchner], que jamais aceitariam isso por convicção ideológica, que tentaram uma política nacional mais autonomista, menos subordinada ao capital, ao liberalismo ou ao neoliberalismo", disse.

O especialista ressalta também que o Macri, "por ser do empresariado, uma das grandes fortunas da Argentina, ele foi sendo entendido e interpretado como um cara que teria mais jogo de cintura que tinha faltado à Cristina para lidar com o mercado". 

"Porque, gostemos ou não, o mercado é um fenômeno importante, e independente da concepção ideológica. Talvez um bom exemplo seja o Brasil no primeiro governo Lula, que tem uma ideologia de esquerda, mas que manteve uma ortodoxia macroeconômica que vinha do governo FHC, o que explica o extraordinário êxito do primeiro governo Lula, ele ter mantido o tripé macroeconômico do governo FHC", afirmou o especialista. 

"Eu acho que a dimensão política partidária e ideológica tem parcela de responsabilidade, mas é apenas uma variável em uma equação muito mais complexa, que tem que colocar o mercado, investidores, gestão, o próprio 'humor' da cena internacional, como por exemplo o preço das commodities", concluiu Paulo Velasco.  

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