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Na linha de frente: quem cuida da saúde dos profissionais de saúde?

© Folhapress / Eduardo AnizelliPaciente de COVID-19 internado no Instituto de Infectologia Emílio Ribas, em São Paulo (arquivo)
Paciente de COVID-19 internado no Instituto de Infectologia Emílio Ribas, em São Paulo (arquivo) - Sputnik Brasil
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Na linha de frente do combate à COVID-19, profissionais de saúde brasileiros têm enfrentado altos níveis de estresse, preocupação e cansaço físico e emocional, muitas vezes submetidos a condições inadequadas de trabalho e sem o devido apoio.

O Brasil se encontra, atualmente, na chamada segunda onda do surto do novo coronavírus. Oficialmente, já são mais de 210 mil mortos e mais de 8,5 milhões de infectados.

Desde a chegada da pandemia ao país, a COVID-19 vem impondo uma série de desafios para as autoridades e para a população em geral. Entre os inúmeros grupos que têm sofrido de maneira mais direta com a realidade da crise sanitária, os profissionais de saúde são, certamente, os que mais tiveram contato com as vítimas da pandemia, ao mesmo tempo em que foram, provavelmente, os mais exigidos profissionalmente, fisicamente e mentalmente nesse período. Sem contar o fato de estarem, eles mesmos, entre os mais acometidos pela enfermidade. 

Pesquisas indicam que grande parte dos profissionais de saúde brasileiros que têm atuado na linha de frente contra a COVID-19 têm apresentado alguns sinais da síndrome de Burnout, distúrbio crônico de caráter depressivo que leva ao esgotamento mental e físico e pode provocar uma série de problemas pessoais e sociais. Preocupado com a exaustão desses profissionais em um momento ainda muito delicado no país, na última semana, o Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana da Fundação Oswaldo Cruz (Cesteh/Fiocruz) fez um apelo pela intensificação das estratégias de saúde para aqueles que trabalham diretamente no combate à COVID-19. 

Desgaste, estresse e falta de apoio na linha de frente

"Tudo começou com muito medo. E as cobranças maiores ainda. Eu trabalho em um hospital que atende a rede pública e em um hospital que é particular e de carteira única. No hospital público, você está dentro de uma UTI COVID e você sabe que vai lidar com COVID-19 o tempo todo. Você fica paramentado o tempo todo. E, no hospital particular com carteira única, onde eu trabalho, eles vão tentando suprir a necessidade do usuário do plano. Então, é um tumulto muito grande. O hospital está montado de um jeito e, daqui a pouco, a onda [de casos] cresce e eles desmontam tudo. Então, quem trabalha em pediatria começa a trabalhar com COVID-19, quem trabalha em berçário começa a trabalhar com COVID-19, desmontam centro cirúrgico e, aí, a onda cai um pouquinho e o hospital começa a voltar tudo ao normal", relata, em declarações à Sputnik Brasil, uma técnica de enfermagem que atua no estado do Rio de Janeiro.

Segundo essa profissional, que preferiu não ser identificada, a intensa rotina nas diferentes instituições onde trabalha é marcada por muita cobrança, o tempo todo. "Desgastante, principalmente o mental". Apesar da exaustão visível, o que não se vê, em nenhum dos dois locais, é qualquer tipo de acompanhamento psicológico, de acordo com ela. 

"Há muitos colegas sendo afastados por COVID-19, mas tem também colegas sendo afastados por saúde mental, sendo afastados por estresse, por um monte de coisas", afirma, acrescentando que esses afastamentos acabam também sobrecarregando outros membros das equipes ou forçando-os a trabalhar em áreas que não são exatamente as que eles conhecem melhor. 
© Folhapress / FramePhotoHospital de campanha para coronavírus na cidade do Rio de Janeiro
Na linha de frente: quem cuida da saúde dos profissionais de saúde? - Sputnik Brasil
Hospital de campanha para coronavírus na cidade do Rio de Janeiro

"Foi uma experiência desgastante. Até mesmo pela forma como começamos a trabalhar na UTI COVID. Sou anestesiologista, nunca trabalhei com pacientes de UTI [Unidade de Tratamento Intensivo], e já sai da faculdade há oito anos. Existem muitas coisas que você acaba esquecendo. Uma noite, a UTI do hospital simplesmente encheu, e como não paravam de chegar pacientes, eles começaram a ser acomodados no centro cirúrgico, pois temos ventiladores. Daquele dia em diante, as cirurgias eletivas foram todas suspensas, e o hospital nos pediu para fazermos o trabalho de intensivista. Os primeiros 15 dias foram muito complicados, até relembrarmos as coisas, criarmos protocolos, além das informações sobre cuidados com o paciente de COVID-19 serem muito poucas na época", lembra o médico Michael Miranda, que atuou por alguns meses na linha de frente contra o novo coronavírus.

Também em entrevista à Sputnik, Miranda, que trabalha em hospitais de São Paulo, conta que alguns colegas, por medo principalmente de levar o vírus para seus parentes, decidiram ficar em casa quando o surto da COVID-19 chegou ao Brasil. Outros anestesistas mais idosos também. Ele, apesar de também sentir medo, achou que seria melhor continuar trabalhando. 

"Seguíamos o protocolo para não nos contaminarmos, mas é extremamente difícil não cometer falhas em plantões de 12 horas colocando e tirando capotes, máscaras, luvas, óculos, face shield. Tenho uma filha pequena, de um ano, e, na época, já estávamos ouvindo falar de síndromes inflamatórias em crianças após COVID-19. Tentei convencer minha esposa a ficar no Rio [de Janeiro], na casa dos meus pais, mas como era uma situação sem prazo pra terminar, ela não quis. Fizemos uma operação de guerra em casa. Todas minhas coisas ficavam trancadas em um quarto. Eu tirava a roupa antes de entrar no apartamento, passava álcool em tudo. Acho que deu certo, até agora não pegamos." 

Ao lado do medo, o cansaço extremo, segundo o médico, também marcou a sua vida e de seus colegas durante o período em que trabalhou diretamente com pacientes da COVID-19. E, assim como em outros lugares, nesse hospital também não foi disponibilizado nenhum tipo de apoio especializado para acompanhar o seu estado emocional.

"Todos os colegas estavam exaustos, todos os dias as conversas eram apenas sobre como estávamos cansados, como gostaríamos de uns dias de descanso. Mas continuávamos porque, na falta de intensivistas experientes, os anestesistas são bem preparados para o trabalho na UTI. Tivemos muitas vitórias e muitas derrotas, algumas bem difíceis. Mas acredito que o saldo final foi positivo. Fizemos a diferença na vida de muita gente. Quanto a acompanhamento para manter a saúde mental, não tivemos nada. Só o apoio dos próprios colegas e das famílias dos pacientes. Em outro hospital em que trabalho, no ABC paulista, existia um serviço de apoio, sim, mas, lá, eu não estava na linha de frente. E também nunca pensei que precisasse procurar esse apoio. Meu maior conforto era voltar pra minha casa todo dia sabendo que minha família continuava bem." 

Vacinação trará alento, mas não a solução

De acordo com Anaclaudia Gastal Fassa, professora titular do Departamento de Medicina Social da Universidade Federal de Pelotas e conselheira da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), desde o início da pandemia, os trabalhadores da saúde vem enfrentando um aumento da demanda nos serviços e, ao mesmo tempo, a necessidade de ampliar o uso de equipamentos de proteção individual, com cuidados redobrados na colocação e retirada e na higienização.

Profissionais de alto risco para COVID-19 foram afastados e a escassez de profissionais de saúde no país, especialmente médicos, tornou difícil, segundo a especialista, a reposição desses profissionais, justamente quando era exigida, mais do que uma reposição, uma ampliação da oferta de serviços de saúde. "Não somente de leitos hospitalares de enfermarias e UTIs, mas também de serviços de urgência, atenção primária à saúde e vigilância em saúde". 

© Folhapress / Fábio Costa / UaifotoTestagem em massa para detecção ou não da COVID-19 na UPA do Colubandê, em São Gonçalo, no Rio de Janeiro, em 4 de dezembro de 2020
Na linha de frente: quem cuida da saúde dos profissionais de saúde? - Sputnik Brasil
Testagem em massa para detecção ou não da COVID-19 na UPA do Colubandê, em São Gonçalo, no Rio de Janeiro, em 4 de dezembro de 2020

"Portanto, os profissionais enfrentaram ampliação de jornadas com piora nas condições de trabalho e aumento de tensão, pois, no início da pandemia, houve a escassez de equipamentos de proteção individual. Durante o pico de 2020, houve falta de anestésico e de outros medicamentos necessários à intubação dos pacientes. E, agora, ocorre a falta de oxigênio. Tudo isso coloca trabalhadores de emergência e UTI sob o terrível dilema moral de decidir quem receberá o tratamento adequado. A inadequada promoção de tratamentos para COVID-19, sem comprovação científica de sua eficácia, também gera tensões entre os profissionais de saúde, gestores e usuários", explica a professora à Sputnik.

Esse quadro é agravado, afirma Gastal, pelo prolongamento da pandemia, que já dura quase um ano, o receio constante de se contaminar e contaminar familiares e o distanciamento social, que limita as chamadas redes de apoio. 

​A vacinação dos profissionais de saúde e a consequente redução do risco de contaminação deverão trazer um alento para esses trabalhadores, segundo a pesquisadora. Mas a pressão nos serviços ainda deve perdurar. Assim sendo, ela chama a atenção para a necessidade de melhorar suas condições de trabalho, garantindo os insumos necessários à atenção à saúde dos usuários, "em sintonia com o conhecimento científico". Para Anaclaudia, os serviços devem superar o foco na biossegurança e ouvir os trabalhadores para melhorar a organização dos processos de trabalho.

"Alguns serviços já implementaram, e este é um aspecto importante, apoio psicológico para esses profissionais. Sem dúvida, a pandemia tem importante impacto na saúde mental dos profissionais de saúde. É preciso monitorar a saúde desses trabalhadores, inclusive após a pandemia, para avaliar tanto os impactos de curto quanto os de longo prazo; melhorar as condições de trabalho e cuidar daqueles que cuidam da saúde da população."

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