A manifestação veio de forma discreta e foi registrada no rodapé da declaração final do encontro, que foi aprovada na íntegra e sem propostas de alteração. De acordo com o documento, o Plano de Ação (2021-2026) deve levar em conta "a transversalização das questões de gênero em todos os projetos de cooperação em matéria de educação, com destaque para as áreas da Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos e do Ensino Técnico Profissionalizante". No entanto, o Brasil deixou registrado "o entendimento de que, do seu ponto de vista, o termo gênero significa o sexo biológico feminino ou masculino".
Além do Brasil, fazem parte da CPLP outros oito países: Portugal, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste. A pedido da Sputnik Brasil, especialistas analisaram o tema e apresentaram opiniões diversas.

A bióloga Monica Giacometti Mai, doutora em Ciências pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e investigadora da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, concorda com o posicionamento adotado pelo governo brasileiro.
"Concordo. À parte da discussão psicológica e social sobre o que cada pessoa entende como identidade sexual, os gêneros são feminino e masculino, uma vez que esses são os critérios de quem nasce com órgãos femininos ou masculinos desenvolvidos. Em termos biológicos, a biologia aponta para os sexos masculino e feminino, pelo menos para a espécie humana. O que acontece, às vezes, é um ser humano vir como hermafrodita. Mas isso é uma questão à parte", pontua a pós-doutora.
Monica reitera que respeita a diversidade de orientações sexuais, mas diz que isso está mais atrelado à psicologia do que à biologia, como defendeu o Ministério da Educação (MEC) no seu posicionamento na CPLP:
"Acho que o que uma pessoa entende psicologicamente da sua sexualidade, se ela é homossexual, heterossexual, transgênero, isso não tem a ver com o sexo que, biologicamente, ela nasceu. Isso é mais psicológico que biológico. Entra na questão da opção sexual ou como se queira chamar. A atração sexual não é uma preferência, simplesmente a pessoa sente aquilo, o que não está relacionado com qual órgão sexual, ou o gênero, melhor dizendo, com o qual a pessoa nasceu".
Educador diz que escolas têm função cívica e que não cabe a elas reduzir questão a sexo biológico
Mestre em Educação pela Universidade de Stanford e doutorando na área pela Universidade de Nova York, Fabio Campos diverge do posicionamento adotado pelo MEC. Segundo ele, a representação do CPLP é uma representação de Estado e, portanto, laica. Ele teme que a posição defendida pelo governo brasileiro esteja mais associada à religião, e menos à biologia.
"Escolas têm função cívica - e 'cívica' aqui vai em sentido lato, e aponta para a preparação do aluno para uma vida em sociedade democrática. Dito isso, qualquer indivíduo pode não concordar com a orientação sexual do outro. Mas negá-la é negar ao outro o direito de ser diferente. E a escola, com sua função cívica, não pode incorrer neste erro. A questão de gênero está posta no mundo lusófono e no Brasil. Não cabe a educadores e alunos negá-la nem reduzi-la a sexo biológico. Não somos nós, educadores e/ou administradores públicos, que vamos igualar sexo e gênero. Cientistas já definiram que há, sim, duas camadas/aspectos diferentes. Portanto, negar gênero é adotar atitude tão negacionista e anticientífica quanto negar esfericidade do planeta", compara Campos.

Enquanto ele concedia entrevista à Sputnik Brasil, compartilhou um e-mail que acabara de receber da Universidade de Nova York sobre o Dia Internacional da Memória, Resistência e Resiliência dos Transgêneros, celebrado na sexta (20). "A NYU [New York University] nem sempre foi solidária com a comunidade LGBTQ+. É uma história da qual não nos orgulhamos. No entanto, gostaríamos de pegar esta data para reconhecer nosso passado de ignorância e negligência na esperança de continuar a fazer melhor por todos membro da nossa comunidade. Nós da NYU reconhecemos que a identidade de gênero inclui mais do que o binário ocidental tradicional de homem e mulher, e essa diversidade de gênero", lê-se no comunicado.
Segundo Campos, essa posição é similar na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE):
"Frequentemente, falamos em participar de grupos como a OCDE, ou admiramos publicamente a educação de países como a Finlândia. Interessante ver, por exemplo, que a Finlândia tem uma preocupação patente com diversidade e gender awareness. O mesmo vale para a OCDE".
Deputado diz que Congresso rejeitou aplicação de ensino de ideologia de gênero nas escolas
Já o deputado federal Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ) cita a Constituição Federal para defender o posicionamento do MEC na CPLP e diz que o Congresso já rejeitou que o tema fosse abordado nas escolas brasileiras.
"A constituição brasileira garante aos pais o ensino sobre a sexualidade dos seus filhos, portanto a postura do governo brasileiro está alinhada com nossa Carta Magna referendada em votações na última década pelo Congresso Nacional, que rejeitou a aplicação do ensino de ideologia de gênero nas nossas escolas", diz o deputado à Sputnik Brasil.
Questionado se considerava inapropriado o debate de questões de gênero mesmo nas áreas da Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos e do Ensino Técnico Profissionalizante, destacadas pelo documento da CPLP como prioritárias para a transversalização do tema, Sóstenes Cavalcante reafirma sua opinião:
"Neste caso, o que importa é a alfabetização, e ensino de uma profissão; e não seria oportuno falar de gênero e ou religião ou assuntos transversais que não sejam inerentes ao objetivo do ensino".
A psicóloga Elisângela Ribeiro, mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), discorda do deputado e diz que não se trata de ensinar ideologia de gênero nas escolas, mas de tornar a diversidade sexual um tema transversal e interdisciplinar no currículo escolar.
"A dimensão da sexualidade como um elemento constituído da condição humana é uma premissa relativamente aceita. Entretanto, a questão, muitas vezes, é limitada aos aspectos biológicos, desconsiderando a dimensão social. A educação é um dos meios para combater a homofobia e lidar com a diversidade. O silêncio em torno dos temas que abordam a sexualidade contribui para o sofrimento psicológico dos jovens, pois não encontram um ambiente onde se sintam compreendidos. Existem alunos que saem do processo educacional devido a práticas cotidianas de preconceito que também estão presentes nas escolas", exemplifica a psicóloga.

Questionada por Sputnik Brasil a partir de qual idade as questões de gênero podem ser abordadas nas escolas, Elisângela explica que as abordagens sobre sexualidade devem respeitar o desenvolvimento psicopedagógico de cada criança, mas ressalta que o posicionamento do MEC não é o adequado para a formação:
"Infelizmente, não surpreende, considerando que, no governo, temos gente que defende que 'azul é de menino, e rosa de menina'. A sexualidade pode ser abordada em qualquer idade, respeitando o momento do desenvolvimento de cada criança e utilizando uma linguagem de fácil entendimento. Quando falo pra uma criança que ninguém pode tocar em algumas partes do seu corpo, estou trabalhando sexualidade. Devemos responder as curiosidades que surgem e que são naturais".
Sputnik Brasil tentou contato com Victor Godoy Veiga, secretário executivo do MEC que representou o Brasil na XI Reunião de Ministros da Educação da CPLP. Por e-mail, a pedido da chefia de gabinete, foi informado que "o secretário executivo não tem agenda disponível, em razão de compromissos já assumidos". Dessa forma, solicitaram que as perguntas fossem enviadas para a assessoria de comunicação do MEC, copiada no e-mail, "para o devido atendimento". As perguntas foram enviadas, mas não foram respondidas até o fechamento desta reportagem.
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