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Caso João Alberto escancara falsa ideia de 'democracia racial' no Brasil, apontam especialistas

© AP Photo / Andre PennerA frase "Vidas pretas importam", vista de cima, cobre a Avenida Paulista perto do MASP (Museu de Arte de São Paulo), 23 de novembro, 2020. As palavras foram escritas pelos ativistas após a morte brutal de João Alberto Silveira Freitas.
A frase Vidas pretas importam, vista de cima, cobre a Avenida Paulista perto do MASP (Museu de Arte de São Paulo), 23 de novembro, 2020. As palavras foram escritas pelos ativistas após a morte brutal de João Alberto Silveira Freitas. - Sputnik Brasil
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A morte de João Alberto Silveira Freitas, espancado por seguranças do Carrefour, em Porto Alegre, chocou o país e gerou uma série de protestos em diversas cidades. Para especialistas, o caso é uma demonstração da falsa ideia de uma democracia racial no país.

De acordo com os dados divulgados pelo DataSUS, o índice de mortalidade de pessoas negras por violência física cresceu 59% em oito anos no Brasil. No mesmo período, o aumento de vítimas brancas por este tipo de óbito foi 1,3%.

A morte de João Alberto Silveira Freitas, 40 anos de idade, na última quinta-feira (19), na véspera do Dia da Consciência Negra, foi mais um caso de violência racial que entrou para as estatísticas, desencadeando protestos ao longo da semana em várias cidades brasileiras.

A diretora do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO), Elisa Larkin Nascimento, em entrevista à Sputnik Brasil, afirmou que o assassinato de Beto Freitas por dois seguranças do Carrefour, sendo um deles policial militar, está "perfeitamente dentro do normal no cotidiano das relações raciais no país".

"Todos os dias, morrem mais de 70 pessoas negras, a maioria homens jovens. Em nome da segurança, há inúmeros casos diários de violência racista, desde a invasão de residências até a trava de portas giratórias. Ultimamente, exemplos vêm sendo filmados. Mesmo assim, impera a indiferença da sociedade. Mas se uma pessoa branca sofre latrocínio, sobe uma gritaria ensurdecedora por diminuição da idade penal, sentenças mais rigorosas e assim por diante", argumentou.

Embora o caso Carrefour tenha gerado uma onda de protestos em diversas cidades brasileiras, Elisa Larkin Nascimento, que também coordena a organização do acervo de Abdias Nascimento, disse não acreditar que a morte de Alberto Freitas possa representar alguma mudança estrutural sobre o racismo no Brasil. "Muito mais provável é continuar a hipocrisia", completou.

© Foto / Silvio AvilaHomem negro confronta tropa de choque enquanto uma mulher negra reza durante protesto contra a morte de João Alberto Silveira Freitas, na quinta-feira (19), quando desencadeou no Brasil uma onda de indignação.
Caso João Alberto escancara falsa ideia de 'democracia racial' no Brasil, apontam especialistas - Sputnik Brasil
Homem negro confronta tropa de choque enquanto uma mulher negra reza durante protesto contra a morte de João Alberto Silveira Freitas, na quinta-feira (19), quando desencadeou no Brasil uma onda de indignação.

O doutor pelo programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia pela UFRJ, Guilherme Marcondes, também disse, em entrevista à Sputnik Brasil, estar cético em relação a uma mudança de paradigma em relação à violência racial no Brasil.

De acordo com ele, a morte de Alberto Freitas, para os movimentos sociais negros do Brasil, é mais uma situação de "descaso, de revolta, e que faz com que esses movimentos tenham tentado mudar essa estrutura a todo custo", mas destaca que o caso Carrefour é uma "reencenação de mais um caso de racismo", lembrando de casos como o de Ágatha Félix, de 8 anos, e Claudia Silva Ferreira, de 38 anos, mortas pela polícia do Rio de Janeiro.

"Eu não sei se é esse caso que pode fazer com que haja uma transformação, mas ele se soma a uma série de casos, a gente pensa na morte de Marielle Franco, na morte de Claudia, Ágatha, uma série de mortes que não mudaram ainda o paradigma para a sociedade branca, para aqueles que detêm o poder [...]. Você ter uma pele mais escura, ter um fenótipo negro descendente, ter um fenótipo indígena descendente, faz com que você seja alvo. Então o João Alberto é mais um dentre todos nós que está marcado para morrer na estrutura dessa sociedade", declarou.

Reação das autoridades

Em meio à comoção do país com a morte por espancamento de Alberto de Freitas, o vice-presidente da República, Hamilton Mourão, disse na sexta-feira (20) que lamentava o caso em Porto Alegre, mas, ao ser questionado se o crime teria sido motivado por questões raciais, ele disse que no Brasil "não existe racismo".

"Lamentável, né? Lamentável isso aí. Isso é lamentável. Em princípio, é segurança totalmente despreparada para a atividade que ele tem que fazer [...]. Para mim, no Brasil não existe racismo. Isso é uma coisa que querem importar aqui para o Brasil. Isso não existe aqui", afirmou Mourão.

© Folhapress / Marlene BergamoManifestantes que participavam de ato na avenida Paulista, em São Paulo, contra a morte de um homem negro em loja do Carrefour de Porto Alegre.
Caso João Alberto escancara falsa ideia de 'democracia racial' no Brasil, apontam especialistas - Sputnik Brasil
Manifestantes que participavam de ato na avenida Paulista, em São Paulo, contra a morte de um homem negro em loja do Carrefour de Porto Alegre.

Guilherme Marcondes observou que "é terrível ter no poder pessoas que não compreendem de fato como funciona a estrutura de poder e a distribuição de poder na nossa sociedade".

"A fala do vice-presidente de que era uma tentativa de importar o que acontece nos EUA vai na contramão de inúmeras pesquisas, de inúmeros debates, dos números que a gente vê sobre quem morre mais no Brasil por força da violência da policial", argumentou.

Já o presidente Jair Bolsonaro, no dia seguinte à morte de Alberto Freitas, no Dia da Consciência Negra, publicou no Twitter que é "daltônico" por não ver cor de pele, não mencionando o crime no Carrefour em nenhum momento.

​Para a diretora do IPEAFRO, Elisa Nascimento, "as duas mais altas autoridades do país apelaram aos abjetos e desgastados lemas da desmoralizada democracia racial".

"Negacionistas da ciência, negam a realidade social do racismo e das desigualdades. Infelizmente, essa postura reflete a opinião de muita gente. O branco hegemônico exerce o privilégio de não precisar se ocupar com a questão racial, a não ser para justificar sua violência contra pessoas negras. Ele vive em sua bolha, indiferente à realidade da maioria da população", disse a diretora do IPEAFRO.

"O maior motor da violência racista são as forças armadas e os órgãos de segurança, que só o poder público pode mudar. Então, as ações de enfrentamento do racismo dependerão da sociedade civil. Tomara que a hegemonia branca da sociedade civil acorde de seu torpor e resolva agir. Para agir, ela precisa renunciar a hegemonia e reconhecer o protagonismo da população negra organizada", acrescentou.

​O cientista social Guilherme Marcondes, que atualmente pesquisa a legitimação de artistas negros na arte contemporânea brasileira, também observou que no Brasil "falta o entendimento de que não somos uma democracia racial". De acordo com ele, "a abolição jurídica da escravização do país não significou de fato uma integração da população negra nos espaços de poder".

"A resposta do movimento negro há muito tempo tem sido o embate da resistência. A gente tem conseguido uma amplificação dessas pautas na mídia, mas ainda é preciso fazer um trabalho muito longo. A reparação histórica, que essa estrutura brasileira tem conosco é uma dívida enorme. A população negra no Brasil precisa de políticas de reparação e de políticas de mudança efetiva dessa estrutura", concluiu o pesquisador. 

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