Macri vai contra a sociedade organizada argentina ao querer alterar a lei da mídia

ENTREVISTA COM JOÃO CLAUDIO PITILLO 2 DE 15-12-15
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Empossado na Presidência da Argentina na quinta-feira, 10, Mauricio Macri anunciou entre suas primeiras medidas a revisão da Lei de Meios (Ley de Medios), que regula as comunicações impressas e eletrônicas no país. Movimentos sociais foram às ruas para protestar.

Promulgada em 2009 pela antecessora de Macri, Cristina Fernández de Kirchner, a Lei de Meios permitia às organizações sociais e à sociedade argentina em geral, segundo o decreto de sua edição, ter alguma participação na política de comunicações da Argentina. Este controle se dava por meio de duas agências, \ a AFSCA – Autoridade Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual e a AFSTIC – Autoridade Federal de Tecnologias da Informação e das Comunicações.

Agora, por meio de um DNU (Decreto de Necessidade e Urgência), o Presidente Mauricio Macri anunciou que estas duas agências ficarão subordinadas ao Ministro das Comunicações, Oscar Aguad, a quem também competirá supervisionar a revisão da Lei de Meios.

A decisão do Presidente Macri levou centenas de manifestantes à Plaza de Mayo, em Buenos Aires, na segunda-feira, 14, para protestar contra o decreto presidencial. Os manifestantes, apoiadores da ex-Presidenta Cristina Kirchner, disseram não admitir qualquer alteração na Lei de Meios nem sequer a sua revisão.

Sobre o assunto, Sputnik Brasil conversou com o historiador João Cláudio Pitillo, pesquisador do Núcleo das Américas da UERJ – Universidade Estadual do Rio de Janeiro. O Professor Pitillo critica a decisão de Macri, afirmando que a revisão da Lei de Meios levará a um retrocesso na Argentina, por retirar da sociedade o poder de participar da política de comunicação do país. 

Presidente eleito da Argentina, Mauricio Macri - Sputnik Brasil
O que muda e o que não muda na Argentina de Mauricio Macri em relação ao kirchnerismo

Sputnik: O que é a Lei de Meios? Por que ela foi instituída e qual a sua importância?

João Cláudio Pitillo: A lei de radiodifusão que vigorava na Argentina era uma lei sancionada pelo General Videla, em 1980, ou seja, uma lei da ditadura que favoreceu o estabelecimento de monopólios de comunicação na Argentina, tal qual no Brasil. Há de se ressaltar que a América do Sul toda tem um processo análogo de estabelecimento das suas radiocomunicações nas mãos de famílias. As ditaduras militares foram sendo substituídas por ditaduras econômicas que tinham respaldo nos veículos de comunicação, no monopólio das comunicações. A Presidente Cristina Kirchner, após sofrer uma dura oposição por parte desse conglomerado de comunicação, atendeu uma demanda dos movimentos sociais, que era a pauta da redemocratização das comunicações na Argentina. Ela sancionou, em 2009, uma lei que alterava aquele monopólio das comunicações e passava a ter a distribuição desses canais e desses meios a partir de licitação pública, acompanhada dos movimentos sociais. Ou seja, ela colocava as comunicações do país sob o controle da sociedade civil, não mais só a gosto do Governo, e obviamente isso desagradou os conglomerados que lucravam milhões e milhões com aquele monopólio, com aquela concentração das comunicações, que é algo muito perigoso porque quem detém informação detém poder.

S: Cristina Kirchner, então, mudou a situação?

A Presidente Cristina Kirchner teve isso como um dos principais marcos do seu Governo e atraiu os olhares de toda a sociedade progressista porque essa é uma luta muito antiga na América do Sul, na América Latina. Essa era uma pauta um tanto difícil, porque está atrelada a uma série de questões de dependência do continente, do atrelamento aos Estados Unidos, às mídias inglesas, ou seja, esse monopólio que existe em nosso continente está atrelado aos países centrais, não é algo simples de ser quebrado. A presidente foi muito incisiva, muito enfática, e chamou os movimentos sociais para conversar. Claro que isso, na época, causou um grande rebuliço na sociedade argentina, mas isso foi amplamente discutido. Podemos dizer que essa lei tem ampla participação popular e recebeu respaldo do Judiciário. E ela entrou pela sociedade adentro, a sociedade se agarrou a essa lei porque é uma maneira de ter rádios e canais de televisão livres, e ter nisso uma pauta regional, uma pauta local. E mais: essa lei garante 70% de programação regional, local, garante 30% de músicas argentinas nas rádios. Ela fortalece a cultura nacional, e isso desagrada os monopólios que estão atrelados a toda uma cultura que é imposta, na América do Sul, de cima para baixo, e que eles chamam de cultura quando nada mais é do que um modismo, um consumismo, algo pueril, que passa. Cristina Kirchner angariou a oposição do conservadorismo e hoje essa atitude de Mauricio Macri soa como um golpe. Essa lei promulgada por Cristina Kirchner é um exemplo para a América do Sul, e obviamente está pressionando outros países a isso. Esta atitude de Macri vai contra a sociedade civil organizada.

S: As agências AFSCA e AFSTIC seriam como as agências reguladoras do Brasil?

JCP: Não, porque as agências reguladoras do Brasil têm indicação direta do Governo, e a sociedade civil está à margem. Os movimentos sociais, os movimentos populares não participam das agências reguladoras aqui no Brasil. Elas são mistas, metade indicada pelos empresários e metade pelo Governo. É mais do mesmo. Não há participação social nestas agências.

S: E no caso da Argentina é totalmente popular?

JCP: Na maioria é a sociedade civil organizada que participa dela. Na Argentina houve uma inserção do movimento social, uma militância maior para essa questão da democratização dos veículos de comunicação. Há uma demanda, haja vista que a população foi às ruas, em grande parte das cidades argentinas, reclamando da ideia do Macri de querer dar um passo atrás, de tirar da mão da sociedade a definição do que ela vai ver, ouvir, do que ela entende por cultura, do que vai entrar de noticiário em sua casa. E isso é uma coisa importante, porque essa Lei de Meios distingue o que é informação e o que é notícia, que são duas pautas completamente diferentes e isso dá poder à população, com informação capaz de elevar o nível de cidadania porque com informação a pessoa se organiza, critica, concorda, discorda, diferente do que é aqui no Brasil, uma pasteurização da informação.

S: Foi esta a razão principal de os apoiadores de Cristina Kirchner terem ido às ruas protestar contra essa alteração promovida pelo Presidente Mauricio Macri?

JCP: O Mauricio Macri vem com uma proposta conservadora muito perigosa. Ele vai ter muitos problemas porque o movimento social durante o Governo Cristina Kirchner se desenvolveu bastante. Não que o Governo Cristina Kirchner tenha sido um exemplo a ser seguido. Não. Teve uma série de falhas, de equívocos, mas no que tange aos movimentos sociais ela travou um diálogo muito justo com eles e atendeu a algumas importantes demandas. Não é à toa que a maioria do Congresso, onde estão os representantes dessa sociedade, continua ligada a Cristina Kirchner e em oposição ao Macri. Ele tem que dar satisfação a quem o financiou, que são os grandes conglomerados econômicos, e isso vai colocá-lo em choque com a sociedade civil organizada. Temos o estabelecimento de um antagonismo, de um projeto conservador, do Macri, um projeto que é uma volta àquele passado nefasto da Argentina de 2000, 2001, contra os movimentos sociais que estão muito motivados, que ganharam as ruas e viram que houve resposta por parte dos Governos Kirchner. A ida desses movimentos para as ruas, hoje, eu acredito que seja o início de uma série de problemas que o Macri vai enfrentar se ele continuar com essa pauta conservadora e um tanto radical, porque ele, em nenhum momento, discutiu com essa sociedade civil que já está organizada. Ele está querendo impor algo de cima para baixo, a tutela do Ministério, que vai ser um Ministério conservador tal qual ele. E obviamente a população está nas ruas por isso. Acredito que os desdobramentos serão maiores.

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