Relações Washington-Havana: EUA têm na agenda mudança de regime em Cuba

Marco Antonio Gandásegui Hijo
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Nesta segunda-feira, 20, Estados Unidos e Cuba restabeleceram relações diplomáticas, após 54 anos de interrupção. O jornalista, sociólogo e professor da Universidade do Panamá Marco A. Gandásegui, hijo, pesquisador do CELA (Centro de Estudios Latinoamericanos Justo Arosemena) e diretor da revista “Tareas” comenta o evento histórico.

A oficialização do reatamento, em Washington, ocorreu com o hasteamento da bandeira cubana no Departamento de Estado, em cerimônia presenciada pelo secretário de Estado norte-americano John Kerry e pelo ministro das Relações Exteriores de Cuba, Bruno Rodríguez. Em Havana também houve uma solenidade alusiva ao restabelecimento das relações diplomáticas entre os dois países, porém a bandeira dos Estados Unidos só deverá ser hasteada na capital cubana em 14 de agosto, quando o Secretário John Kerry visitar Cuba em missão oficial.

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A próxima meta para a plena normalização das relações entre os dois países é a aprovação pelo Congresso dos Estados Unidos do levantamento do bloqueio econômico imposto a Cuba, atitude já recomendada pelo Presidente Barack Obama aos congressistas e imediatamente transmitida ao colega Raúl Castro.

Outra questão a ser debatida entre Cuba e Estados Unidos é o pagamento de indenizações recíprocas pelas perdas econômicas sofridas como consequência das expropriações cubanas e do bloqueio norte-americano à Ilha.

Sobre o restabelecimento das relações diplomáticas entre Cuba e Estados Unidos, a Sputnik Brasil entrevistou o jornalista, sociólogo e professor da Universidade do Panamá Marco A. Gandásegui, hijo, pesquisador do CELA (Centro de Estudios Latinoamericanos Justo Arosemena) e diretor da revista “Tareas”. A seguir, a íntegra da entrevista com o jornalista e analista panamenho.

Sputnik: Como o senhor vê esta reaproximação diplomática entre Cuba e Estados Unidos após mais de 50 anos de rompimento?

Marco A. Gandásegui, hijo: Visto de fora, o reencontro entre Estados Unidos e Cuba parece uma colisão entre uma locomotiva e uma bicicleta. Os Estados Unidos têm em sua agenda a mudança de regime político em Cuba. Por sua vez, Cuba tem como objetivo abrir os canais comerciais bloqueados por Washington por mais de 50 anos. Sob todos os pontos de vista, há objetivos conflitantes. A pergunta é: existe alguma janela através da qual os Estados Unidos podem abrir um espaço para a colaboração?

S: O que realmente significa a normalização das relações entre Cuba e Estados Unidos?

MAGh: Para os Estados Unidos, significa que a sua classe capitalista hegemônica (a oligarquia financeira) convenceu outros setores da classe dominante de que a Revolução Cubana não sofrerá colapso como consequência do fim da experiência soviética em finais do século passado. Os Estados Unidos também descobriram que somente uma invasão da ilha poderá acomodar ou atender os seus interesses. Mas não uma invasão militar. Os Estados Unidos pensam em termos de uma invasão – por saturação econômica – de capitais que, bem manejados, poderão desestabilizar a Revolução Cubana. Para Cuba, chegou a hora da verdade. A Revolução só sobreviverá se conseguir conviver com o mundo capitalista que a rodeia literalmente. Diplomaticamente, Cuba conseguiu se inserir na América Latina. Mantém relações diplomáticas com a Europa ocidental e com o Canadá. Conseguiu estabelecer relações eficazes com China e Rússia. A pergunta é: Cuba poderá dar o passo em direção aos Estados Unidos? Os cubanos sabem que os norte-americanos não se aproximam com boas intenções. Mas qual país capitalista demonstrou boas intenções nos últimos 250 anos? Mikhail Gorbachev (pela ex-União Soviética) e Deng Xiaoping (pela China) são testemunhas. Cuba pode utilizar estas lições do passado recente para desenvolver uma estratégia que evite os erros de Moscou e não caia nas medidas extremas de Pequim. Não se pode esquecer que Cuba é uma ilha com 12 milhões de habitantes, e que China e Rússia são países continentais.

S: O que Cuba representa hoje para os Estados Unidos?

MAGh: Cuba representa para os Estados Unidos muito mais do que a sua economia. Sua cultura teve grande influência sobre os Estados Unidos ao longo de sua história. Os cubanos resistiram por mais de meio século aos ataques permanentes dos Estados Unidos porque conhecem, minuciosamente, a sua estrutura política e social. Aqui se demonstra a grandeza de Fidel Castro ao expressar, de maneira magistral, a sabedoria do povo cubano. Os Estados Unidos acreditam que este é o momento oportuno para dar um golpe em Cuba. Um golpe contra um povo insurgente que se levantou e não permitiu que se manchasse a sua dignidade.    

S: Segundo carta datada de 30 de junho, de Barack Obama para Raúl Castro, os Estados Unidos se comprometem a manter com Cuba relações de alto nível, baseadas no respeito mútuo, a salvo de quaisquer interferências em assuntos internos, e com plena observação do direito à integridade territorial de cada país, entre outros princípios. A seu ver, trata-se de correspondência estritamente protocolar ou ela dissimula algum outro possível objetivo?

MAGh: O papel aceita qualquer coisa. Cuba sabe que a agenda dos Estados Unidos é desestabilizar a Revolução. Os Estados Unidos tampouco escondem as suas intenções. Parece uma corrida, muito similar ao triunfo da Revolução de 1.º de janeiro de 1959, quando Fulgencio Batista saiu correndo do seu palácio. Quem chegou primeiro a Havana, os “verde-olivas” do Movimento 26 de Julho, de Cuba, ou os agentes da CIA, dos Estados Unidos? A História nos dá a resposta. Cuba tem três anéis (sistemas) de defesa para garantir a solidez da sua Revolução. Em primeiro lugar, as suas Forças Armadas, que só poderiam ser derrotadas a um custo muito elevado. Em segundo lugar, o Partido Comunista, que tem presença organizada em cada comunidade e em cada rua daquele país. E, em terceiro lugar, um povo disposto a defender, até seu último suspiro, as suas conquistas. Os intercâmbios e os protocolos não abordam esta realidade. No entanto, sem dúvida, a estratégia norte-americana é chegar diretamente aos bolsos do povo cubano, descarregando espelhinhos de todas as cores e tamanhos. Os Estados Unidos descartaram o seu Plano A e agora utilizarão o seu Plano B. Cuba tem a oportunidade de aproveitar a conjuntura histórica para construir uma rede internacional – literalmente global – de vínculos econômicos e políticos para consolidar a Revolução do seu povo, concebida por José Martí e materializada por Fidel Castro.   

S: O fato de os Estados Unidos restabelecerem relações diplomáticas com Cuba não significa que automaticamente será levantado o bloqueio econômico contra o regime dos irmãos Castro, uma vez que tal medida depende da aprovação do Congresso, de maioria republicana. Até que ponto Barack Obama, democrata, terá força política para enfrentar e vencer a resistência dos republicanos a Cuba? Como se sabe, o Partido Republicano é declaradamente contrário ao restabelecimento das relações diplomáticas entre Cuba e Estados Unidos. 

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MAGh: Os Estados Unidos estão iniciando um período pré-eleitoral. A questão cubana será parte importante dos debates dentro dos partidos políticos e entre estas organizações políticas. O interessante é que a oligarquia norte-americana (o capital financeiro) e as Forças Armadas estão de acordo em abrir um novo capítulo (ou um novo livro) no que se refere às relações dos Estados Unidos com Cuba. O Partido Republicano não será obstáculo neste projeto, e o Partido Democrata (atual ocupante da Casa Branca), menos ainda. O capital financeiro e os militares, sem qualquer dúvida, negociarão cada ponto e vírgula em relação ao desmantelamento do bloqueio econômico que os Estados Unidos mantêm sobre Cuba. O capital financeiro e os militares aceitarão tudo que beneficie os capitalistas dos Estados Unidos, mas ampliarão as negociações acerca de tudo que beneficie Cuba.

S: Outra questão em destaque na correspondência de Obama para Castro é a do respeito pelos direitos humanos, pela liberdade e pelos valores fundamentais dos seres humanos. Esta seria uma fórmula de, diplomática porém dissimuladamente, Obama sugerir a Castro que os presos políticos em Cuba sejam libertados?

MAGh: Em Cuba não há presos políticos conforme a definição clássica desta condição pelo Direito Internacional. Isto significa que as pessoas privadas de liberdade em Cuba, que cometeram crimes contra a sociedade, não pertencem à classe política. Nos Estados Unidos, ao contrário, há milhares de presos políticos, especialmente entre aqueles que lutam pelos seus direitos civis. Para os Estados Unidos, os direitos humanos são uma ferramenta utilizada pela oligarquia financeira militarista em suas campanhas midiáticas. Se Cuba ceder um centímetro, os Estados Unidos se apoderarão da Ilha sob o manto de sua “assistência humanitária” combinada com cassinos e prostíbulos.   

S: Restabelecidos os laços diplomáticos com Cuba e levando em consideração o papel desempenhado pelos Estados Unidos nas negociações pela aprovação do uso (pacífico) pelo Irã do seu programa nuclear, podemos supor ou mesmo acreditar que a próxima iniciativa política internacional de Barack Obama será a de buscar a normalização das relações com o Irã?

MAGh: Os Estados Unidos têm um marco de referência global. Sua preocupação central com esta conjuntura é a ascensão da China como país emergente, e não apenas com a sua potência industrial. A China se converteu também num fator competitivo no mundo financeiro com a criação do Banco Asiático de Investimento e Infraestrutura, e outras iniciativas. O que mais preocupa os Estados Unidos são os avanços militares realizados pela China, o que pode deixá-los para trás. Por outro lado, os Estados Unidos têm um olho atento sobre a Alemanha. O distanciamento de Berlim diante da crise ucraniana e o envolvimento de suas alas imperialistas diante da pequena Grécia enviam claros sinais para Washington. O Irã é uma peça-chave na agenda norte-americana para o Oriente Médio. É rico em petróleo, que os Estados Unidos já não necessitam tanto para satisfazer suas necessidades internas mas que julgam como seu direito controlar. O Irã, paradoxalmente, é a peça de que os Estados Unidos necessitam para controlar a Arábia Saudita e o Estado de Israel. Chegarão Washington e Teerã a um acordo que transcenda a questão nuclear? É provável. Se somarmos a Rússia a estes movimentos geopolíticos, a situação poderá ser vista de uma forma ainda melhor. O eixo euroasiático parece estar se definindo cada vez com mais clareza. Cuba pode manobrar por estas apertadas e ziguezagueantes vias como ciclista experimentado. Seu triunfo sobre a locomotiva (o imperialismo) dependerá da comprovada sabedoria do seu povo nesta nova conjuntura.    


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