Como vive na Venezuela quem não tem dólares?

© Sputnik / Aleksei Sukhorukov / Acessar o banco de imagensNota e moeda de um dólar americano
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Cada vez fala-se mais de como circulam dólares em determinadas zonas de Caracas. No entanto, o que acontece com quem não tem acesso contínuo à moeda norte-americana?

É noite e o torneio de futebol avança time após time no campo que se encontra nas alturas do bairro, entre casas humildes, edifícios, e uma neblina instalada sobre a colina El Ávila. Cada ingresso custa US$ 10 (R$ 44) em dinheiro, o prêmio para o vencedor também será em dólares: 60% do que for arrecadado, revela a Sputnik Mundo.

Já não surpreende mais que os preços em uma loja de eletrodomésticos também estejam em dólares, assim como os aluguéis, carros, itens em mercados e até mesmo cachorros-quentes.

O processo se expandiu durante o ano passado. Se antes era algo relacionado somente a classes altas, uma entrada em uma boate nas zonas mais abastadas da capital venezuelana se pagava com dólares, os últimos meses integraram a presença da moeda norte-americana ao dia a dia de classes menos favorecidas.

A principal mudança não foi ter o dólar como moeda de referência e poupança, algo que em outros países da América Latina, por exemplo, na Argentina, é comum. A transformação foi que começaram a circular dólares para gastos ordinários: as cédulas se multiplicaram nas ruas caraquenhas, em particular as de US$ 1, US$ 5, US$ 10 e US$ 20.

A sociedade, a economia de cada dia, se viu assim atravessada por uma linha divisória: o acesso ao dólar e, junto a isso, em que quantidade. Quem dolarizou sua renda, cálculos e contas bancárias ficou a salvo de maiores dificuldade econômicas.

Contudo, o que ocorre com aqueles que ficam de fora dessa grande mudança na economia do país sul-americano?

Economia e resiliência na Venezuela: como é a vida dos excluídos?

A economia venezuel na atravessou nos últimos cinco anos situações tão complexas como o desabastecimento de produtos de primeira necessidade, a hiperinflação ou a ausência e revenda de dinheiro em espécie. A chamada dolarização é um dos novos fenômenos dentro do quadro prolongado de diferentes dificuldades.

Ante esses cenários surgiram numerosas formas de resistência e recomposição. Mariana García e Hernán Vargas, pesquisadores venezuelanos, estudaram durante os últimos três anos como foram essas mutações, particularmente nos setores populares, mas também nas classes médias.

© AP Photo / Ariana CubillosApoiadores do presidente Nicolás Maduro em Caracas, na Venezuela
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Apoiadores do presidente Nicolás Maduro em Caracas, na Venezuela

Trata-se de uma linha de pesquisa sobre o que chamam de "reprodução social e economias populares", em um contexto que, como explica Vargas em entrevista para a Sputnik Mundo, "em três anos tem mudado tremendamente".

Apesar das mudanças, alguns elementos centrais da mutação, tanto em áreas urbanas como rurais, se conservaram. García e Vargas apontam quatro pontos centrais "para responder à pergunta de como as pessoas fazem para sobreviver, para resolver".

• Migração do trabalho

Em primeiro lugar, "a reconfiguração do trabalho te faz mudar do trabalho formal ao informal, por conta própria, que pode ser dentro ou fora do país, porque a busca é a de maior quantidade de divisas".

Assim afloram as iniciativas de trabalho informal, vendas e revendas.

Esse foi um dos mecanismos ante o aumento dos preços, depreciação da moeda e, consequentemente, a redução dos salários, Os salários deixaram de ser o bastante, muitos deixaram trabalhos assalariados e se desfez uma das características dos anos anteriores do chavismo, quando, explica Vargas, "todos queriam um trabalho fixo, contratado, em alguma instituição pública, talvez em uma privada".

• Subsídios

Em segundo lugar, García explica que uma das coisas "determinantes na materialidade cotidiana são as políticas de transferência monetária direta, ou de subsídio ao consumo, como o comitê local de abastecimento e produção (Clap) ou os bônus".

Isso "tem um peso tremendo na sobrevivência das pessoas que vivem de seu trabalho", afirma Vargas. A essas políticas se deve agregar o subsidio invisível, "que se vê quando se compara como o há fora", que é o dos serviços, como água, luz, gasolina e alguns transportes.

• Mudanças no consumo

Em terceiro lugar, os pesquisadores salientam a dimensão da reconfiguração do consumo, onde houve uma forte queda em comparação com o modo de vida que se instalou na época de Hugo Chávez.

"O modo de vida desses anos era que todos os fins de ano você ia tomar uma cerveja com os amigos, aqueles que trabalhavam por salários podiam almoçar na rua todos os dias, tudo isso se perde, é importante em termos de como se recompõe a vida na Venezuela", explica Vargas.

Isso gerou um espelho no qual as pessoas comparam seu atual modo de consumo com o anterior, algo que afeta a migração porque "uma das coisas que você observa é que bate contra esse espelho, sai do país para encontrar uma configuração de vida que não se encontrará".

• Resistências coletivas

"As reconfigurações levaram a formas coletivas cada vez maiores, que podem ser organizadas, mercados comunais, campesinos, sistemas de intercâmbio entre comunidades organizadas, cooperativismo."

Essas formas coletivas descritas por Vargas se articulam com o que, explica, é o "crescimento do pequeno", como a agricultura familiar, o apoio mútuo entre famílias, o intercâmbio direto entre vizinhos, por grupos no WhatsApp. O pequeno, multiplicado em escala nacional, tem impacto massivo.

Acesso aos dólares

Os quatro elementos descritos se mantêm ao longo dos últimos anos e do recente processo da comumente chamada dolarização, assim García explica que "uma vasta maioria que sobretudo habita setores populares, tanto urbanos como rurais, tem um acesso escasso ou esporádico a dólares".

As estratégias para conseguir recursos em dólares dependem das possibilidades, habilidades e reflexos históricos. Assim, por exemplo, para as classes médias, acostumadas a profissões bem estabelecidas, como, por exemplo, os professores, "se vêm obrigados a ir, porque não sabem fazer outra coisa diferente de trabalhar em troca de um salário pelo que sabem fazer".

Essas dinâmicas reconfiguraram o mapa da economia de cada dia, das ruas, dos comércios, dos consumos, criando divisões entre acesso e quantidade de dólares. Trata-se de uma dinâmica visível que ampliou desigualdades, gerando uma estabilidade para um setor pequeno da sociedade, aquele que conseguiu garantir suficientes recursos na divisa dos Estados Unido

A tendência

A expansão desigual dos dólares na economia cresce mês a mês. O governo afirmou que há uma "autorregulação de uma economia em resistência", o que parece significar que esta é uma situação que se permitiu e se incentivou em um contexto de assédio.

A tendência indica que o processo de dolarização continuará, e com ele as transformações econômicas, sociais e políticas. Esse parece ser o desejo dos grandes capitais, empresários nacionais e grandes bancos. O governo continuará abrindo portas para a "autorregulação", mantendo as políticas sociais que foram centrais para enfrentar os últimos anos.

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