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'Verdade a conta-gotas': comissão quer desvendar mistérios da Guerrilha do Araguaia

© Cláudio FachelComissão Nacional da Verdade investigou as graves violações aos direitos humanos cometidas durante o período da ditadura militar no Brasil
Comissão Nacional da Verdade investigou as graves violações aos direitos humanos cometidas durante o período da ditadura militar no Brasil - Sputnik Brasil
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Após 44 anos desde o fim da Guerrilha do Araguaia, ainda há desaparecidos, o Exército não abre os arquivos e região é assombrada pela memória de torturas e execuções. A Sputnik Brasil conversou com Eugênia Gonzaga, da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, que explica por que é preciso esclarecer os crimes da Ditadura.

Entre os dias 16 e 20 de julho, o Ministério dos Direitos Humanos (MDH) esteve na região do Araguaia para a realização de escavações em possíveis áreas com desaparecidos políticos, além de ouvir testemunhas. A expedição foi realizada pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMCDP), da Secretaria Nacional de Cidadania do MDH. A iniciativa busca esclarecer violações da Ditadura Militar no Brasil e a valorização da verdade sobre a memória histórica.

A CEMCDP foi criada em 1995 através da lei nº 9.140, considerada grande conquista das famílias de mortos e desaparecidos durante a Ditadura Militar. Através dela, o Estado pode vir a reconhecer sua culpa em relação aos mortos de forma oficial e as famílias podem receber indenizações. Ela também recebe recomendações da Comissão Nacional da Verdade.

Segundo consta no relatório da Comissão da Verdade: "A Guerrilha do Araguaia não foi uma guerra; antes, do ponto de vista militar, configurou uma experiência de aprimoramento das técnicas de contraguerrilha das Forças Armadas Brasileiras, na qual mulheres e homens foram executados sem que suas garantias mais básicas fossem respeitadas".

A Sputnik Brasil conversou com Eugênia Augusta Gonzaga, presidente da CEMCDP e procuradora da República, que relatou a crueldade das execuções e permanência do medo entre os moradores da região do Araguaia ao tocar no assunto.

"O governo brasileiro levou a ferro e fogo a repressão"

"O governo brasileiro levou a ferro e fogo a repressão a esses jovens que foram para a mata tentando convencer a região que poderiam construir algo diferente. A ideia desses guerrilheiros era viver junto com a comunidade, era apoiar, era dar aula e levar essa comunidade a uma compreensão tão grande, que eles lutassem pela terra deles, que eles não aceitassem a presença de grileiros. A região do sul do Pará é uma região em que a luta pela terra sempre algo muito presente", relata Eugênia Gonzaga.

Em um dos tomos do relatório da Comissão Nacional da Verdade, divulgado em 2014 pelo governo federal, o grupo trata do período de atuação da Guerrilha do Araguaia como um período de difícil compreensão da realidade.

A chamada Guerrilha do Araguaia nasceu de uma dissidência do Partido Comunista do Brasileiro (PCB), que até 1960 chamava-se Partido Comunista do Brasil. O grupo dissidente, o novo Partido Comunista do Brasil (PCdoB), acreditava na via revolucionária como forma de alcançar o socialismo no Brasil, e antagonizava os grupos políticos que criam na via democrática como forma de chegar aos mesmos objetivos.

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A dissidência organizada em 1962, do PCdoB, manteve-se crítica à política de João Goulart, em oposição ao tratamento do PCB com o presidente. O golpe de 1964 foi então interpretado como uma confirmação da tese de enfrentamento direto que emanava na doutrina do PCdoB, cuja direção marcava o combate ao latifúndio e ao imperialismo dos EUA como prioridade.

A partir de 1966, o partido criou uma nova perspectiva sobre sua ação política e as formas de chegar ao poder, aproximando-se do Partido Comunista Chinês. Essa aproximação gerou três missões do partido para treinamento na China, a partir de 1964.

O formato desse movimento é então voltado para o campo, uma tática consolidada com o documento Guerra popular: caminho da luta armada no Brasil, aproximando-se da crítica ao latifúndio praticada pelo partido. As guerrilhas fariam então o papel de convocar as massas e liberar zonas do controle do governo com a expectativa de assim avançar contra o Estado.

Assim, o partido estabeleceu o primeiros destacamentos militares e escolheu regiões que atendessem às exigências teóricas de estratégicas para realizar o combate. Por atender aos pré-requisitos, a zona do Araguaia, entre Pará, Goiás e Maranhão, foi escolhida. A área era conhecida como ponto de conflitos entre latifundiários e moradores, e por isso esperava-se ganhar a simpatia da população no apoio às causas locais.

"As crianças não sabem, os jovens não ouviram falar e os idosos têm quase que um pacto silencioso"

A expedição da CEMCDP ao Araguaia foi feita em decorrência da resposta de uma família da região que há mais de dois anos insistia com a comissão em relação a essa denúncia. A comissão esteve em outros locais e já prepara mais expedições, como Marabá.

Conforme explica Eugênia Gonzaga, a região do Araguaia ainda convive com uma memória difusa sobre os acontecimentos em torno da guerrilha que foi combatida no território. Mais de 40 anos depois, o medo ainda permanece entre os moradores.

Por isso, a CEMCDP toma cuidado com os nomes dos locais visitados e dos familiares que acompanharam o grupo, mantendo informações sensíveis em sigilo.

"Infelizmente a questão da guerrilha ainda é muito presente lá. As pessoas da região têm receio de falar, elas preferem ficar quietas. Então a gente dá a mínima divulgação possível para esses depoimentos individuais", afirma Eugênia Gonzaga, que acrescenta: "Até hoje a gente vê que eles têm muito receio, eles não querem se envolver. As crianças não sabem, os jovens não ouviram falar e os idosos têm quase que um pacto silencioso. Eles já viram gente morrer porque abriram informações, então a guerrilha é ainda algo que desperta medo neles".

"Colocavam cabeças nas hélices dos helicópteros"

Após 6 anos no local, em 1972, começaram os enfrentamentos no Araguaia entre os 69 guerrilheiros, divididos em 3 destacamentos militares, e governo da DItadura Militar.

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A Ditadura atacou as guerrilhas utilizando ações por terra, destruindo pontos de apoio ao grupo, assim como distribuindo panfletos em que difamava os guerrilheiros, chamando-os de "terroristas" e também "maconheiros". Foi a 1ª vez que o Exército utilizou grupos de paraquedistas para um ataque.

No mesmo ano foi realizada a Operação Papagaio, destacando 5 mil militares para enfrentar os guerrilheiros. Entre as armas utilizadas está o uso de Napalm.

As primeiras operações, no entanto, foram consideradas de sucesso moderado, demonstrando dificuldade de enfrentar as tropas guerrilheiras e também de conseguir o apoio da população local.

No entanto, houve prisões e mortes de guerrilheiros, além de tortura de moradores e presos para a obtenção de mais informações para a terceira operação.

Já em 1974, a Operação Marajoara substituiu a forma de atuação focando em grupos localizados a fim de neutralizar a rede de apoio aos guerrilheiros e em seguida eliminá-los. Ao final da operação, 56 guerrilheiros foram mortos e mais de 200 camponeses foram presos por apoiarem o grupo, com pelo menos 17 mortos entre os moradores. A maioria das mortes ocorreram no ano de 1974.

"Torturavam a população para que a população contasse, queimavam as roças para que os guerrilheiros não pudessem se alimentar. Eles foram dizimando, eram 60 jovens na mata e tinha mais de 300 pessoas do Exército nessa última operação", aponta Eugênia Gonzaga.

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Ela relata que a desproporcionalidade da ação dos militares contra a guerrilha foi uma das graves violações do episódio. Mesmo já derrotados, os guerrilheiros eram executados quando encontrados.

"E as violações foram inúmeras. A gente fica assim, estarrecido com os relatos da população o medo que eles colocaram nos moradores da região, maneira como eles combateram… Já no caso dessa última fase, os guerrilheiros estavam dizimados, já tinham sido presos e mortos praticamente todos. E eles deixavam essas pessoas na mata correndo, fugindo e quando encontravam eles não prendiam, eles matavam", relata a procuradora.

As operações na região incluíam a tortura e prisão dos moradores da região, acossados para denunciar os membros da guerrilha. Essa situação criou um ruído traumático na comunidade que ainda não dissipou diante da falta de informações oficiais sobre os acontecimentos.

"Então uma das piores violações é o sigilo sobre tudo isso, fazendo com que cresçam no imaginário das pessoas lendas e histórias. Como agora teve esse livro do [jornalista] Hugo Studart. Isso machuca muito os familiares. É o que eles chamam de 'verdade a conta-gotas'. Não existe uma versão oficial e cada um fica lançando aí um tipo de história sobre o assunto e os familiares sempre nessa busca terrível pelo destino dos corpos, por saber o que aconteceu e ter realmente a versão oficial do destino dado a cada um desses guerrilheiros e guerrilheiras", explica Eugênia Gonzaga.

As medidas de compensação aos moradores da região, segundo relata Eugênia Gonzaga, se concentram em indenizações cedidas pelo Estado. No entanto, ainda há pedidos sob análise, sendo que há casos negados por suposta colaboração com regime militar na captura dos guerrilheiros. Para a presidente da Comissão, no entanto, mesmo essas famílias merecem medidas de compensação, porém prefere um modelo de indenização coletiva e não individual.

"A região realmente sofreu, foi inteiramente afetada por esse tipo de repressão. Foi muito forte, a presença dos corpos… eles [os militares] desfilavam com corpos, colocavam cabeça na hélice do helicóptero, como se fosse para dar o exemplo".

"O que falta são informações"

A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMCDP) hoje é ligada ao Ministério dos Direitos Humanos e recebe apoio de emendas parlamentares para manter seu funcionamento. A presidente da CEMCDP, Eugênia Gonzaga, afirma que inclusive o ministério da Defesa é solícito aos pedidos do grupo durante as visitas aos locais de investigação, emprestando carros e estrutura ao grupo.

"O que falta são informações. Por exemplo, hoje o ministério da Defesa presta todo o apoio. Nós vamos lá, eles emprestam carros, veículos, eles prestam todo o apoio. mas ninguém abre nenhum tipo de informação. Então são diligências em que as famílias acabam sofrendo muito, vão de um lado para o outro, procuram, escavam, mas sem informações oficiais. Então eu acho ainda que o maior apoio que os governos poderiam dar seria a liberação das informações oficiais sobre o ocorrido", afirma.

"As pessoas que pedem esse tipo de intervenção militar são pessoas que não sabem o que aconteceu"

O clima de tensão política no Brasil trouxe consigo o retorno de discursos pedindo o retorno da Ditadura Militar. Durante a greve dos caminhoneiros que parou o parou no mês de maio, entre as várias pautas defendidas da categoria, estava presente o pedido de Intervenção Militar. Em diversos dos bloqueios nas estradas brasileiras, foram registradas faixas com chamados ao Exército para a tomada do poder.

"As pessoas que pedem esse tipo de intervenção militar são pessoas que não sabem o que aconteceu. Elas não fazem ideia, elas pensam que os guerrilheiros eram bandidos. Não eram bandidos. Eram pessoas lutando contra um governo não legítimo, que entrou sem voto popular, sem nenhuma medida jurídica, uma tomada de poder pela força", aponta a presidente da CEMCDP, afirmando que os guerrilheiros eram poucos e foram assassinados em condições desiguais na mata, sem condições de oferecer realmente algum perigo ao país.

Eugênia vê a volta do anseio pela Ditadura com preocupação, e ressalta o papel de sua CEMCDP para a salvaguarda de memória em relação ao período da Ditadura Militar. Para ela, o estabelecimento de uma educação sobre o período ainda é uma luta sendo travada, e esses pedidos de volta da Ditadura seriam consequência do esquecimento gerado pelo trabalho incompleto da redemocratização.

"No Brasil a gente vê que a Ditadura terminou, mas ela foi muito bem sucedida na política de esquecimento. Então isso não fez parte dos livros de História, a própria imprensa se calou muito em relação a esses fatos. A luta dos familiares não é uma luta tão presente na pauta política como é em outros países, então a gente tenta fazer o movimento contrário, que é liberar, que é dar vazão a essas medidas todas", conclui, afirmando que a CEMCDP trabalha "para que não se esqueça e para que não se repita".

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