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Ucrânia: OTAN precisa de inimigos para existir e Rússia se sente eleita para isso, diz Celso Amorim

© Folhapress / Bruna PradoEx-chanceler Celso Amorim em sua residência no Rio de Janeiro, em 28 de dezembro de 2017
Ex-chanceler Celso Amorim em sua residência no Rio de Janeiro, em 28 de dezembro de 2017 - Sputnik Brasil, 1920, 02.08.2022
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Há uma urgência em se buscar a paz por meio do diálogo entre Rússia, Ucrânia e Ocidente, mas apenas uma pessoa em posição de liderança mundial toca no assunto: o papa Francisco, segundo o diplomata e ex-ministro das Relações Exteriores Celso Amorim.
Em uma entrevista exclusiva de pouco mais de uma hora concedida à Sputnik Brasil na última segunda-feira (1º), o principal conselheiro de política externa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) — líder isolado na disputa para a Presidência do Brasil nas eleições de 2022 — demonstra uma visão multidimensional e isonômica das questões globais mais urgentes.
Embora seja um crítico expresso da operação militar especial da Rússia na Ucrânia, desencadeada em 24 de fevereiro, defende o diálogo entre diversos países para estancar o conflito — inclusive com a participação de nações em desenvolvimento e da China, país cuja aliança com a Rússia ele também analisa.
Sente falta, no entanto, do que classifica como "uma grande liderança europeia" com capacidade e disposição para ajudar no intermédio de uma interlocução entre Moscou e Kiev. Lembra, também, que "um acordo pressupõe concessões dos dois lados".
Amorim considera que a estratégia do Ocidente de debilitar a Rússia a partir de sanções econômicas é "muito ruim" e inócua.
"Não vai acontecer", pondera, "e só vai aumentar o rancor".
Para ele, o cálculo ocidental de prolongar o conflito na Ucrânia, sem cogitar negociações de paz e fornecendo cifras bilionárias em ajuda militar, está "errado moralmente", porque vai causar mais mortes e crises alimentares e econômicas.
Eleito o "melhor chanceler do mundo" pela revista Foreign Policy em 2009, o diplomata de carreira consolidada no Itamaraty tece críticas contundentes às ambições da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).

"A Rússia vai se sentindo cada vez mais o inimigo de eleição. Porque a OTAN, para se manter, precisa de inimigos. Então há essa percepção. Eu digo tudo isso porque acho que é preciso ter o entendimento real para se poder encontrar uma solução", avalia.

© Folhapress / Brazil Photo Press / Charles ShollEx-chanceler Celso Amorim durante o lançamento de seu novo livro, "Laços de Confiança: O Brasil na América do Sul", em 22 de julho de 2022
Ex-chanceler Celso Amorim durante o lançamento de seu novo livro Laços de Confiança: O Brasil na América do Sul, em 22 de julho de 2022 - Sputnik Brasil, 1920, 02.08.2022
Ex-chanceler Celso Amorim durante o lançamento de seu novo livro, "Laços de Confiança: O Brasil na América do Sul", em 22 de julho de 2022
O ex-ministro evita críticas diretas ao presidente da Ucrânia, Vladimir Zelensky, e classifica-o como um personagem de uma tragédia.
"Mas limites entre a tragédia e a farsa nem sempre são claros", emenda.
O conflito, no entanto, evocou uma preocupação até então inédita para Amorim: o risco do uso de armas nucleares, ameaça que, segundo ele, não é vista desde a Crise dos Mísseis de Cuba, em 1962, em plena tensão da Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética.
O diplomata brasileiro Celso Amorim durante coletiva de imprensa no seminário Ameaças à Democracia e a Ordem Multipolar, em São Paulo, em 13 de setembro de 2018 - Sputnik Brasil, 1920, 01.08.2022
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Celso Amorim: para resolver crise na Ucrânia, objetivo deve ser chegar à paz, e não debilitar Rússia
Veja abaixo os principais trechos da entrevista do ex-chanceler Celso Amorim sobre o conflito entre Rússia e Ucrânia — a primeira de uma série que será publicada ao longo da semana.
Sputnik Brasil: Qual seria o caminho para se selar a paz no meio do conflito entre Rússia e Ucrânia?
Celso Amorim: Eu acho que o primeiro ponto é querer a paz. De todos e dos dois lados. Não vou comentar tanto a Rússia porque não acompanho diariamente, mas acompanho por parte do Ocidente a ideia de debilitar a Rússia, portanto prolongar a guerra. Essa ideia de debilitar a Rússia é uma ideia muito ruim. Não vou nem entrar no mérito dos regimes atuais. Mas isso me faz lembrar o que ocorreu depois da Primeira Guerra Mundial, em que as potências vencedoras tiveram como objetivo principal debilitar a Alemanha, e o resultado foi o que nós conhecemos.
Há sempre outros fatores que atuam, mas, de qualquer maneira, a Rússia é um país grande demais. Claro que não é justo nem com um país pequeno, mas, nesse caso, não é só questão de justiça: não vai acontecer [da Rússia ser debilitada pelas sanções do Ocidente] e vai apenas aumentar o rancor. Eu vejo que, mesmo olhando do ponto de vista do olhar frio do Ocidente, eles [países ocidentais] não querem ganhar. Porque das duas, uma: ou a Rússia vai ter mais rancor e, em algum momento, na primeira oportunidade, reagir; ou, ela também, para se proteger, vai se ligar mais e mais com a China. Isso é bom para o Ocidente? É bom para o mundo multipolar? Não creio.
Então eu acho que essa estratégia [do Ocidente] é muito ruim. Não estou dizendo que tudo o que a Rússia está fazendo é certo ou não, também não tenho nem conhecimento em detalhes. Mas eu acho que é preciso negociar. Acho que há uma urgência em procurar a paz. Mas eu vejo que a única pessoa que está falando disso, das pessoas que estão em posição de poder, é o papa Francisco, que tem falado disso com frequência.
Os outros, lamento muito, mas nem o secretário-geral da ONU [António Guterres, da Organização das Nações Unidas] tem falado disso. O secretário-geral da ONU fez uma visita a Moscou, que acho importante, e também a que êxito? Mas aquilo que deveria ser importante, que é a questão de tratar dos refugiados, se esgotou em si. Não foi um passo para se começar uma negociação séria que fosse levar à paz.
Acho que isso vai continuar causando um grande trauma, mortes, problemas muito sérios, inclusive na Europa com problemas sociais (e quando tem problemas sociais, quem sofre são os mais vulneráveis). Porque você pode imaginar que, para um diretor de uma grande empresa, não vá faltar gás para a casa dele no inverno. Mas para um imigrante que esteja lá, não sei. Então eu acho que essa situação é muito sensível.
É muito assustador que você leia, praticamente toda semana em algum veículo sério, aventar-se o risco de uso de armas nucleares. É a primeira vez que ocorre desde a crise dos mísseis de Cuba, portanto há 60 anos. Então é algo muito assustador que haja isso, que seja considerado. Claro que é sempre imputada a iniciativa de uso à Rússia, mas, de qualquer maneira, entra nisso como seria a reação do Ocidente, como seria a reação dos Estados Unidos.
Já estávamos com grandes problemas para a sobrevivência da humanidade, como a questão climática, as pandemias, as próprias tensões que já existiam, como a desigualdade; passamos a ter mais um, que é o risco do uso de armas nucleares.
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SB: O nome do ex-presidente Lula foi inserido no Centro de Combate à Desinformação do governo da Ucrânia contendo uma desinformação a de que ele afirmou que a Rússia deveria "liderar uma nova ordem mundial". Mas isso não é verdade, o ex-presidente brasileiro jamais disse essa frase. O governo ucraniano retirou a menção na semana passada. Como o senhor avalia essa situação?
CA: Essas coisas todas são guerras de narrativas. O presidente Lula tem uma posição muito independente. Obviamente ele critica, é preciso deixar claro, a invasão da Ucrânia porque isso fere um princípio básico do direito internacional, que é a renúncia ao uso da força (é o princípio básico em torno do qual é construída a própria Carta das Nações Unidas), e também fere o princípio da integridade territorial dos Estados, que é muito importante. Mesmo criticando, nós sabemos que o presidente Lula quer uma solução. Não adianta só ficar olhando e condenando, dizendo que está errado.
Para haver uma solução, você tem que olhar o quadro todo de uma maneira mais complexa. Aí você tem que ver a questão da expansão da OTAN, tem que ver o comportamento do governo ucraniano; é uma série de coisas. Não adianta só ficar condenando e demonizando o governo russo. Volto a dizer: pessoalmente, acho que foi um erro da Rússia. Quem sou eu para dizer, mas eu acho isso. Foi um erro porque a questão do uso da força é uma linha vermelha que você não pode ultrapassar. Eu sei que eles podem citar antecedentes do Iraque, da Líbia, enfim, vários outros [países] em que houve o uso da força pelos Estados Unidos e por países ocidentais. Mas não justifica, a meu ver, porque você não pode porque esses precedentes não valem como precedentes porque eles estão errados — e têm que ser condenados. Politicamente, mas também não me cabe julgar esse detalhe, foi um erro, porque, digamos, acho que se subestimou a reação que haveria não só da parte dos EUA, mas das populações na Europa. Pode-se dizer que é uma manipulação da mídia, ou seja o que for, mas, de qualquer maneira, há um sentimento muito forte, e isso vai prejudicar [a Rússia].
Eu não sei qual será o final disso, e mesmo supondo que, no final, alguns dos objetivos da Rússia sejam alcançados, só a Finlândia e a Suécia entrarem para a OTAN já é algo que pesa desfavoravelmente. Então, pessoalmente, eu acho que é um erro. Agora, eu acho também que não adianta só ficar condenando.
A estratégia ocidental de debilitar a Rússia, de prolongar a guerra está errada. Errada moralmente, porque vai ter mais mortes, mais consequências, e consequências para o mundo inteiro por causa da crise alimentar. Mas também porque vai se criando uma animosidade que depois é difícil de se superar.
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SB: Dando sequência a isso, como o senhor avalia a postura do Ocidente? Poderia detalhar um pouco mais?
CA: É uma coisa complexa, e que é antiga. Como eu cresci na época da União Soviética, era aquela "guerra ao comunismo", a própria teoria da contenção do George Kennan [diplomata americano que traçou a estratégia dos EUA para conter as potenciais tendências expansionistas da União Soviética].
Mas eu acho que até é mais antiga. Eu acho que há uma percepção por parte do Ocidente de que a Rússia é um país enorme que não se amolda ao que os países ocidentais consideram que "deve ser", enfim, o sistema político moderno, a democracia etc. Ao mesmo tempo, ela não é tão distante: ela não é uma "outra civilização", por assim dizer, como a China, ou poderia ser o Japão, porque ela [Rússia] é um pouco europeia também. Então se tem uma situação de tensão que é secular.
Tem um artigo de 1952 do Arnold Toynbee, que é um historiador britânico — que não era simpático ao comunismo de maneira nenhuma, nem especialmente simpático à Rússia. Ele se chama "A Rússia e o Ocidente" e ele mostra, ao descrever as preocupações da Rússia com a segurança, ele mostra que elas não são imaginárias, que elas decorrem da história (Napoleão, Hitler, e mesmo mais atrás, com a Polônia, empurrada por países ocidentais, evidentemente; e mais atrás ainda tem os Cavaleiros Teutônicos). Então é uma coisa secular esse conflito. E a Ucrânia é justamente a área onde esse conflito ocorria, era o limite, era a fronteira. Ucrânia é uma palavra que, em polonês, quer dizer "fronteira". É um lugar, segundo o Samuel Huntington [cientista político norte-americano], onde termina o Ocidente e começa, vamos dizer, uma civilização diferente. Então há uma tensão permanente.
Agora, a existência dessa tensão, na minha opinião, recomendaria cautela. Antes se poderia imaginar o argumento de que a União Soviética, bem ou mal, tinha uma ideologia de que o comunismo era internacional, então apoiaria revoluções comunistas em outras partes do mundo. Fez menos do que falou, mas acho que havia essa ideia. Agora, quando acaba o comunismo e acaba a União Soviética, não tem nenhum sentido você expandir a OTAN. Porque a OTAN foi criada para conter o comunismo durante a Guerra Fria. Então não tinha mais nada o que conter.
A partir daí, a Rússia vai se sentindo cada vez mais o inimigo de eleição. Porque a OTAN, para se manter, precisa de inimigos. Então há essa percepção. Eu digo tudo isso porque acho que é preciso ter o entendimento real para se poder encontrar uma solução. Mas sempre repetindo que nada disso justifica o uso da força. É uma quebra do princípio básico do direito internacional dos pilares das Nações Unidas.
SB: O ex-presidente Lula foi uma das poucas vozes dissonantes do Ocidente quando foi capa da revista Time, em maio, ao fazer observações críticas a Vladimir Zelensky. O senhor concorda com a leitura do ex-presidente em relação ao presidente ucraniano? O que pensa a respeito dele?
CA: Não é o caso, para mim, de ficar olhando o comportamento dele enquanto personagem. Você tem personagens de uma grande tragédia, mas às vezes os limites entre a tragédia e a farsa nem sempre são claros. Mas não vou julgar isso. Não retiro o lado, que é normal, de tratar da autodefesa [da Ucrânia]. Agora, ele faz isso com permanente arrogância, inclusive em relação ao Ocidente, cobrando mais ajuda militar. Então ele também não está colaborando para que se encontre esse final da guerra, para que se chegue à paz. Essa é a minha impressão como analista. Não estou fazendo um julgamento pessoal. Vejo com muita preocupação isso tudo. E acho até que muitos países ocidentais também veem com preocupação, porque acho, algumas vezes, que eles querem avançar em alguma negociação e o Zelensky não deixa isso.
SB: Houve a polêmica capa do casal Zelensky na revista Vogue americana na semana passada…
CA: Mas é o Zelensky que você tem que criticar ou é a revista Vogue? Agora, ele se deixou levar. A vaidade nele é uma coisa muito forte. Mas eu não quero julgar as pessoas, eu acho que o problema são as atitudes, o que você precisa ver é estrategicamente. Agora, talvez essa foto seja reveladora de uma disposição de querer estar em evidência, de colocar isso acima da busca da paz, que deveria ser o objetivo principal.
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SB: Quando se fala em uma nova ordem multipolar, é impossível não pensar na China e na Rússia e nas relações amigáveis que ambos os países mantêm. O senhor acha que essa nova ordem está de fato se configurando? O conflito ucraniano está acelerando a formação dessa nova ordem? Como avalia a questão?
CA: Eu já via uma nova ordem multipolar se formando naturalmente. Eu acho que o conflito na Ucrânia introduz um elemento, digamos, de instabilidade nessa nova ordem, que eu não necessariamente previa que ocorresse. Certamente não da forma que ocorreu. A minha visão da multipolaridade é onde haveria até uma rivalidade, mas uma rivalidade benigna, de competição, o que permitiria, inclusive, aos países procurarem a melhor relação, relações mais vantajosas, e não ficarem dependentes de um único poder. Não haveria um poder hegemônico.
Eu acho que o conflito da Ucrânia acentua, talvez, a quebra de uma hegemonia norte-americana, mas coloca outros riscos, os riscos de confrontação, da maneira como está ocorrendo. Não estou dizendo que a culpa é disso ou daquilo. [O conflito] está evidenciando, digamos assim, uma ruptura muito forte entre o que você poderia chamar de noroeste, quer dizer, o Ocidente norte, que são [os países do] Ocidente rico, e, do outro lado, digamos, o sudeste, que seria a China, a Rússia, mais ao leste do que ao sul, como uma outra força. Isso, infelizmente, pode conduzir a uma bipolaridade.
Até porque, vejo que nesse conflito, para minha decepção, a União Europeia não agiu (e entendo até as razões pelas quais eles fizeram isso). O fato é que o alinhamento deles [aos EUA] é total. A OTAN começa a tratar de temas que não têm nada a ver com o Atlântico Norte, como a Colômbia, e espero que haja uma evolução com o novo governo, porque a Colômbia é associada à OTAN. Isso é uma coisa que nos deixa preocupados. Ou nos deixava. Acho que agora, com o governo Petro, ele deve manejar isso. Mas mesmo fora da Colômbia, eles [OTAN] querem procurar aliados e associados no Oriente Médio e em outras partes do mundo. E transformam o mundo, quase que novamente, em dividido: entre a OTAN e o resto. Isso não é bom. Não é boa essa bipolaridade, digamos assim, que está se recriando. É mais uma razão para se tratar o conflito da Ucrânia com muita sabedoria.
Não sei como se faz exatamente, mas eu acho que um grupo de países poderia, digamos, incluir países europeus, poderia incluir países do BRICS, a China, certamente, porque a China tem uma influência grande na Rússia. Indiretamente, no Ocidente também, mas sobretudo na Rússia. [Esses países] poderiam entrar para ajudar a encontrar uma paz razoável, uma paz que seja aceitável. Em uma guerra, você só tem três maneiras de terminar: ou é pela derrota de um deles, ou pela rendição (que eu não vejo acontecer de um lado ou do outro, nesse caso), ou pelo acordo. E o acordo pressupõe concessões dos dois lados. Para que isso ocorra, tem que haver diálogo.
Então, às vezes, acham que é impossível. Não é impossível. Você vai começando a conversar, você vai descobrindo que há fórmulas (não vou mencionar que fórmulas, porque seria muito pretensioso). Mas poderia imaginar algumas fórmulas baseadas na história, em outras experiências. A ONU mesma tem histórias. Claro que esse conflito é um conflito especial porque é um conflito no coração da Eurásia, portanto no centro geopolítico do mundo, envolvendo potências nucleares de um lado e de outro. Porque evidentemente a Ucrânia não está sozinha do lado dela, tem os países ocidentais, sobretudo os EUA.
E a Rússia obviamente é a maior potência nuclear. Então é uma coisa gravíssima. Mas você pode, através do diálogo, encontrar soluções. Não acho que seja impossível, agora, precisa querer. Enquanto cada um ficar culpando o outro pelo conflito, não vai haver solução.
SB: O senhor se disse um pouco decepcionado em relação à União Europeia. O presidente da Turquia demonstrou mais habilidade política para costurar um acordo entre a Rússia e a Ucrânia sobre o trânsito de alimentos do que a União Europeia. Na terça passada [26 de julho], o governo turco anunciou que está elaborando mais um pacto, desta vez sobre o envio de combustíveis para o restante do mundo. Qual a leitura geopolítica que o senhor tem sobre essa questão?
CA: Independentemente do julgamento que se possa fazer sobre a política interna turca, que eu não vou falar porque não cabe na nossa visão de não intervenção, a Turquia é um país que tem revelado, em muitas situações, grande capacidade negociadora. Nós participamos com a Turquia de uma negociação bastante complexa com o Irã sobre o programa nuclear iraniano. Depois ela acabou não indo para frente da forma que nós havíamos sugerido porque quem havia pedido, que eram os EUA, deu para trás.
Tenho uma grande admiração pela capacidade diplomática da Turquia. É um país que está no meio de uma grande variedade de conflitos, inclusive tem que operar vários conflitos, às vezes, até em que os aliados são contraditórios. E tem essa posição geográfica fundamental porque, na realidade, no mar Negro só se entra pelos canais do Bósforo e de Dardanelos.
Tem todos os acordos que vêm de antes e depois da Primeira Guerra Mundial, então dá a ela uma força especial na negociação. Mas eu acho que ela [a Turquia] pode desempenhar um papel positivo, sim, porque ela, ao mesmo tempo, é membro da OTAN (um membro meio irregular, meio de lado, mas é membro da OTAN) e, ao mesmo tempo, tem muito boas relações com a Rússia, inclusive. Até adquiriu aviões russos.
E com a Ucrânia também. Se você pensa na Ucrânia, se você pensa nos séculos XVIII, XIX naquelas regiões ali, as forças que existiam eram o Império Russo, dos czares, o Império Otomano, os tártaros, que tinham uma certa ligação com o Império Otomano. A própria Guerra da Crimeia [1853-1856] envolveu esses países, envolveu o Império Otomano. Então eles têm vivência dos detalhes geográficos e estratégicos que estão em jogo.
A Turquia pode desempenhar um papel muito importante. Quando nós falamos em um conjunto de países [para solucionar o conflito ucraniano], eu penso, obviamente, na China, eu penso na Turquia, acho que até o Brasil poderia ajudar (com o atual governo, não, porque ele carece totalmente de credibilidade, mas em outra situação o Brasil poderia ajudar).
Eu acho que [deveria haver] uma conferência internacional que envolvesse países europeus — sobretudo Alemanha e França, que são dois países decisivos e que dependem (sobretudo a Alemanha, que depende muito da relação [com a Rússia], a Itália depende muito também) da relação com o fornecimento de combustíveis por parte da Rússia —, que envolvesse a China, que envolvesse dois ou três países em desenvolvimento e a Turquia. Claro que EUA, mas Estados Unidos eu considero quase que parte do conflito, e a Rússia e a Ucrânia, que são parte do conflito. Você teria um grupo de países que pudesse contribuir, que tivesse como objetivo chegar à paz. Então você vê o que é preciso para chegar lá. O objetivo não pode ser debilitar a Rússia, dar um exemplo para a China via Taiwan. Quando os objetivos só forem esses, só vai ter guerra.
Além da crítica ética que pode ser feita à guerra, você tem uma crítica política. Qualquer um percebe que o objetivo de debilitar a Rússia simplesmente não vai ser alcançado. Não vai ser alcançado e pode gerar outras consequências muito mais graves.
SB: A diplomacia russa tem falado que é difícil classificar como estão as relações com os EUA porque elas estão no pior nível possível.
CA: Por isso que você tem que ter outros países participando também. Eu acho também que há uma falta de uma grande liderança europeia, de um país que tenha poder e, ao mesmo tempo, uma liderança disposta a discutir com um pouco de isenção.
SB: Parece que nenhum líder europeu está querendo assumir essa dianteira, pelo contrário.
CA: É preciso reconhecer que a Rússia subestimou a reação psicológica, talvez em alguns momentos até muito emocional, que existe na Europa nessa situação. Vários desses países foram invadidos, não pela Rússia, mas foram invadidos [em outras épocas] e veem isso como uma coisa muito, muito dramática.
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