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Decisão argentina de legalizar o aborto reflete no Brasil e grupos vão agir nas ruas e no Congresso

© REUTERS . Flor GuzzettiReação de uma apoiadora à legalização do aborto na Argentina após votação do Senado em Buenos Aires em 30 de dezembro de 2020
Reação de uma apoiadora à legalização do aborto na Argentina após votação do Senado em Buenos Aires em 30 de dezembro de 2020 - Sputnik Brasil
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Representantes dos dois lados entendem que mudanças envolvendo o tema passam por mobilizações populares e pelo Poder Legislativo. Mas há o temor de que decisões venham pelo Judiciário.

Não foi só boa parte dos 45 milhões de argentinos que acompanharam a votação que legitimou o aborto no país do Papa Francisco. O Brasil, maior nação católica do mundo, e seus grupos a favor e contra o aborto estavam atentos ao que se passou em Buenos Aires.

E eles vão mexer as peças desse tabuleiro que sempre passa por Brasília. Vão mexer e falar.

"A aprovação foi essencial porque o número de mulheres que morrem pela criminalização do aborto é absurdo", disse a deputada estadual Renata Souza (PSOL) à Sputnik Brasil. "São pessoas que recorrem ao aborto ilegal sem condições básicas. A Argentina apresenta a possibilidade de o tema ser colocado como saúde pública. É um recado para a América Latina e o Brasil deve se espelhar nela".

Não é o que pensa Jaime Ferreira Lopes, fundador e presidente de honra do grupo Brasil Sem Aborto, que também foi entrevistado pela Sputnik Brasil.

"Da nossa parte, achamos a decisão lamentável. O placar apertado mostra como a questão é profunda no país. Trata-se não apenas de descriminalizar o aborto, mas legalizar tudo. É uma lei permissiva que, em alguns casos, pode tornar o aborto legal até o sétimo mês", argumentou Lopes.

O debate é enorme e tem causas políticas, morais, econômicas e, claro, religiosas. Antes da votação no Senado argentino na noite de terça-feira (29), o papa Francisco publicou no Twitter:

​O Filho de Deus nasceu descartado para nos dizer que toda pessoa descartada é um filho de Deus. Veio ao mundo como uma criança vem ao mundo, débil e frágil, para que possamos acolher nossas fragilidades com ternura.

Não teve jeito. Na madrugada desta quarta-feira (30), o Senado aprovou o texto. A interrupção voluntária da gravidez (IVE) até a 14ª semana obteve 38 votos a favor, 29 votos contrários e uma abstenção, como informou o jornal Clarín. Quatro senadores estiveram ausentes.

Há duas semanas, a Câmara dos Deputados já tinha aprovado o projeto por 131 a 117 com seis abstenções.

Votações apertadas, muita polêmica, mas o fato é que agora a Argentina é o quarto país da América do Sul onde o aborto é legal. Os outros três são Uruguai, Guiana e Guiana Francesa. 

A nova lei argentina

Desde 1921, quando foi sancionado o Código Penal do país, o aborto era permitido na Argentina apenas em caso de estupro ou de perigo para a vida da mulher. 

A nova lei obriga os estabelecimentos de saúde a realizar a interrupção da gravidez em até dez dias corridos após o requerimento. Qualquer conduta que atrase a realização do procedimento é passível de três meses a um ano de prisão.

A partir da 15ª semana de gestação, o aborto continuará sendo criminalizado, salvo em caso de estupro ou perigo para "a vida ou saúde integral da mulher".

O termo "integral", no entanto, deverá ser retirado do texto final quando a lei for promulgada pelo Executivo, afirmou o senadora Norma Durango.

A lei e a realidade brasileiras

No Brasil, o aborto só é legal em três casos: gravidez decorrente de um estupro, risco à vida da gestante e anencefalia do feto, ou seja, defeito congênito no cérebro.

A lei 12.845 de 2013 regulamenta o atendimento obrigatório e integral à pessoas em situação de violência sexual e concede todos os meios à gestante para interromper a gravidez em caso de estupro, sem que seja necessário que a mulher apresente boletim de ocorrência, nem faça exame de corpo de delito.

Segundo o DataSUS, o processamento de dados do Sistema Único de Saúde, o número de procedimentos realizados pelo órgão devido a abortos malsucedidos – sejam eles provocados ou espontâneos –  foi 79 vezes maior do que o de interrupções de gravidez previstas em lei durante o primeiro semestre de 2020.

Nos seis primeiros meses do ano, o SUS realizou 1.024 abortos legais em todo o Brasil. 

© Folhapress / Cris FagaProtesto contra a liberação do aborto no Brasil na avenida Paulista, em São Paulo
Decisão argentina de legalizar o aborto reflete no Brasil e grupos vão agir nas ruas e no Congresso - Sputnik Brasil
Protesto contra a liberação do aborto no Brasil na avenida Paulista, em São Paulo

No mesmo período, foram 80.948 curetagens e aspirações, processos necessários para limpeza do útero após um aborto incompleto e que são mais frequentes quando a interrupção da gravidez é provocada.

O sistema brasileiro gasta 30 vezes mais com procedimentos pós-abortos incompletos do que com abortos legais. No primeiro caso, são gastos R$ 14,29 milhões, contra R$ 454 mil gastos com a interrupção prevista em lei.

© AP Photo / Silvia IzquierdoManifestantes a favor da legalização do aborto durante protestos no Dia de Luta pela Descriminalização do Aborto na América Latina e Caribe, Rio de Janeiro, 28 de setembro de 2020
Decisão argentina de legalizar o aborto reflete no Brasil e grupos vão agir nas ruas e no Congresso - Sputnik Brasil
Manifestantes a favor da legalização do aborto durante protestos no Dia de Luta pela Descriminalização do Aborto na América Latina e Caribe, Rio de Janeiro, 28 de setembro de 2020

Próximos passos

O novo fato na Argentina tem eco no Brasil em termos práticos. Os grupos pró e contra vão se mexer rumo a Brasília, mais exatamente ao Congresso. Qualquer mudança na Constituição precisa de 3/5 dos votos dos parlamentares. Em uma circunstância política de um governo conservador, isso pesa na balança.

"Sabemos do lobby religioso. Assim, a possibilidade de mudança, dentro do Parlamento, é reduzida. Mas é preciso uma mobilização para pressionar o Congresso. E fazer um debate amparado na ciência, nos direitos da mulheres, e não em uma lógica religiosa e fundamentalista", defendeu Renata Souza.

Para movimentos contrários ao aborto, como a Comunidade Católica Porta Fidei ou o Brasil Sem Aborto (BSA), a política do atual governo federal serve como uma apólice de seguro.

Em outubro, Jair Bolsonaro assinou decreto que visava garantir a vida "desde a concepção" e os "direitos do nascituro". A medida é vista por defensores de direitos reprodutivos como mais uma ofensiva do presidente contra os casos previstos em lei para a interrupção de gravidez. O Artigo Cinco da Estratégia Federal de Desenvolvimento para o Brasil no período de 2020 a 2031 traz a seguinte orientação:

"Promover o direito à vida, desde a concepção até a morte natural, observando os direitos do nascituro, por meio de políticas de paternidade responsável, planejamento familiar e atenção às gestantes".

O idealizador e fundador da BSA está atento ao poder que o Legislativo tem para mudar ou não o status do aborto no país. E atento também a algo que foge da alçada dos dois lados da questão.

"Temos frentes parlamentares no Congresso. Mas o que nos preocupa é o Judiciário, ou seja, que a questão do aborto siga pela via judicial. Nosso temor é que possa seguir pelo ativismo judicial - o STF, por exemplo - e assim a luta fica mais difícil", disse Jaime Ferreira Lopes.

O caso da menina de 10 anos

Para ele, é importante que não se crie no Brasil mais excludentes de punibilidade - as exceções previstas na lei do aborto - e que não se caia em reações emocionais no país como nos casos de estupro. Lembrando que "aborto no Brasil é crime", Lopes entende que até em casos de estupro é preciso analisar melhor a situação.

Como a da menina de dez anos, capixaba, que era violentada pelo tio, engravidou e teve a gravidez interrompida na 22ª semana em agosto.

"Ali houve equívoco de avaliação clínica. O tempo de gestação poderia ser maior e no devido momento fazer uma cesariana. Entendemos também que a menina deveria ter tido apoio psicológico do Estado. E se não houvesse alguém da família que pudesse ficar com a criança, alguém poderia adotá-la. Teria sido um caminho mais fácil", disse ele.

Jaime também critica o governo ainda no tema do estupro. Diz que o Estado é "conivente" com os abortos clandestinos "que têm números inflados como estratégia mentirosa para ampliar a adesão popular" e que essa clandestinidade é facilmente identificável. 

"A Polícia Federal poderia fazer isso, checar estes locais. O fato é que este número, que é uma falácia, e esta situação não são justificativas para legalizar o aborto", defendeu Lopes.

Números do aborto 

No Brasil, baseado em dados do DataSUS de 2019, para cada 100 internações, 99 eram por abortos espontâneos e de tipos indeterminados e apenas um era por aborto previsto em lei. A cada dez mulheres internadas, seis eram pretas ou pardas e quatro, brancas. 

Em 2020, o SUS registrou 642 internações por aborto de moças entre 10 e 14 anos e, para efeito de comparação, 714 por asma em crianças da mesma faixa etária.

No período entre 2010 e 2019, o SUS notou que a cada 20 crianças internadas para aborto, oito eram da Região Nordeste, a mais pobre do país. No mesmo período, para cada menina branca que se submetia ao procedimento cirúrgico, havia três negras.

De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), o número de abortos gira entre 40 e 50 milhões por ano. Isso significa, no mínimo, 109 mil casos por dia.

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