2020: como as turbulências desse ano difícil afetaram a nossa noção de tempo

© AFP 2023 / Patrick HertzogPessoas usando máscaras protetoras em montanha russa de parque temático em Rust, na Alemanha, 29 de maio de 2020
Pessoas usando máscaras protetoras em montanha russa de parque temático em Rust, na Alemanha, 29 de maio de 2020 - Sputnik Brasil
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Poucos se aventuram a negar que o ano de 2020 foi um dos mais difíceis da história moderna. A pandemia, a recessão econômica e a falta de perspectiva afetam psicologicamente a grande maioria dos cidadãos, ainda que de formas diferentes.

Os felizardos que chegaram a dezembro de 2020 sabem que esse pode ter sido um dos anos mais difíceis da história moderna. Pandemia, crise ambiental, recessão econômica e polarização política formam um quadro apocalíptico, praticamente inconcebível nos idos de 2019.

Mas 2020 com certeza ficará marcado na história como um ano no qual eventos antes inimagináveis, como uma quarentena, passaram não só a se tornar realidade, mas também lugar comum.

Foram tantas crises que a importância relativa de cada uma delas ficou diluída: os incêndios na Austrália, Amazônia e Pantanal, o desemprego massivo e os quase dois milhões de mortos pela COVID-19 estão emaranhados em uma grande crise chamada 2020.

Essa sucessão de crises foi tão avassaladora que criou uma sensação de perda da noção do tempo. Quando foi mesmo que faleceu Kobe Bryant? Lembra quando a Regina Duarte tomou posse no Ministério da Cultura?

Um ano sem começo nem fim

Essa sensação de que o ano se passou como um borrão pode estar ligada ao cancelamento de eventos que normalmente utilizamos como marcos para delimitar momentos de nossas vidas, como aniversários, formaturas, celebrações coletivas e viagens.

No Brasil, eventos em massa caíram em descrédito após um casamento de membros da elite, realizado em Itacaré, no sul da Bahia, ter sido apontado como um dos principais epicentros da propagação do vírus no país, em 7 de março.

Depois disso, a velocidade com a qual a pandemia se alastrou dificultou a observância de períodos de luto. Neste ano, o Brasil perdeu tantas personalidades de peso, que foi difícil dedicá-las as homenagens devidas.

Zé do Caixão, Chica Xavier, Flávio Migliaccio, Fernando Vanucci, Rodrigo Rodrigues, Moraes Moreira, Aldir Blanc, Gesio Amadeu, Gilberto Dimenstein, Gerson King Combo, Eduardo Galvão, Vanusa, Tom Veiga e Nicette Bruno são só alguns dos quase 190 mil brasileiros que nos deixaram, sem a possibilidade de terem um velório adequado, em função da pandemia.

© AP Photo / Natacha PisarenkoMulher segura o porta-retrato da mãe, que faleceu em função da COVID-19, em Buenos Aires, Argentina, 11 de agosto de 2020
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Mulher segura o porta-retrato da mãe, que faleceu em função da COVID-19, em Buenos Aires, Argentina, 11 de agosto de 2020

Sem esses eventos marcantes, ficamos com mais dificuldades de nos situar no calendário e de organizar as nossas memórias. Assim, por mais difícil que tenha sido, a impressão muitas vezes pode ser a de que nada aconteceu neste ano.

"Aquilo que antes determinava nossas rotinas foi suspenso. Ter hora para trabalho, hora para escola, hora para voltar para casa, etc, se tornou indefinível e maleável", disse a psicanalista Maira Barbosa Marques à Sputnik Brasil.

"Esta suspensão pode ser angustiante na medida em que é preciso criar uma nova relação com o tempo, partindo de novas coordenadas, e isso demanda um processo de construção individual", revelou a especialista. 

© AFP 2023 / Rafael Martins Mulher grávida em frente à sua casa em ocupação popular, no subúrbio de Salvador, Bahia, 27 de outubro de 2020
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Mulher grávida em frente à sua casa em ocupação popular, no subúrbio de Salvador, Bahia, 27 de outubro de 2020

Para uns, esse ano passou tão devagar que janeiro parece ter sido em outra década. Para outros, o ano passou tão rápido, que parece que escorreu por entre os dedos.

"O tempo é vivido por cada sujeito a partir da sua subjetividade. A sensação que pode causar, como passar rápido ou devagar demais, vai depender da relação daquele sujeito e das coisas que vivenciou no período", disse a psicanalista.

Portanto, "por mais que a pandemia seja um evento que apresenta muitas mudanças no cotidiano coletivo, a forma de se viver o presente e nomeá-lo é inevitavelmente diferente para cada um", notou Marques.

Entre quatro paredes

O aumento do tempo que permanecemos em casa, em função da quarentena e do distanciamento social, foi um dos fatores que mais impactaram a alteração da noção do tempo em 2020.

Segundo Marques, algumas pessoas "entendem que puderam fazer um uso mais produtivo do tempo em quarentena, criando espaços para outros interesses".

"Há também aqueles que, sem as barreiras físicas entre trabalho e vida pessoal, se viram sugados por uma continuidade sem fim de produção, chegando a um severo esgotamento e estresse", contou a psicanalista.

Marques nota que a "vivência do tempo em pandemia também muda conforme as condições de cada um":

"Um casal, por exemplo, que trabalha e passa a fazer home office, pode encontrar nos tempos livres formas de se ocupar com outras coisas que antes ficavam de lado, como filmes, livros, hobbies", contou Marques. 

© AP Photo / Ebrahim NorooziIraniano toca contrabaixo em seu quintal, durante quarentena em Teerã, Irã, 5 de abril de 2020
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Iraniano toca contrabaixo em seu quintal, durante quarentena em Teerã, Irã, 5 de abril de 2020

Essa janela de oportunidade foi utilizada por muitos no início da pandemia no Brasil, quando as transmissões ao vivo pelas redes sociais tornaram-se um fenômeno nacional. Alguém já se esqueceu do recorde batido pela cantora Marília Mendonça, que fez a live mais assistida na história em uma noite de quarta-feira, em abril deste ano?

De fato, os cursos online, aulas magnas e debates pela plataforma Zoom tiveram um período áureo ente abril e julho deste ano, possibilitando que muitas pessoas se reconectassem e explorassem novas áreas de interesse.

No entanto, a lua de mel com a vida virtual não foi tão duradoura. A sucessão interminável de eventos online trouxe termos como "esgotamento digital" ou "síndrome de burnout" para o vocabulário da quarentena brasileira.

© Foto / Agência Brasil / Marcos Corrêa / PRLíderes reunidos durante conferência do G20, realizada via videoconferência sob a presidência da Arábia Saudita
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Líderes reunidos durante conferência do G20, realizada via videoconferência sob a presidência da Arábia Saudita

A realidade pode ter sido bem diferente para quem enfrenta a quarentena com filhos, lembrou Marques.

"Uma família com filhos, equilibra pratos para conseguir trabalhar e cuidar das crianças, vendo o tempo se achatar diante do aumento de demanda e de responsabilidades que a ausência das escolas e das redes de apoio promovem".

Ela ainda nota a mudança da nossa relação com os afazeres domésticos, sentido a sua demanda por "tempo, trabalho e energia. Isso abriu espaço para questionamentos sobre como nosso coletivo trata este tipo de questão".

© AP Photo / Juan KaritaFamília usa máscara em sua carpintaria, em El Alto, Bolívia, 29 de agosto de 2020
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Família usa máscara em sua carpintaria, em El Alto, Bolívia, 29 de agosto de 2020

Nem todos tiveram uma relação simples com a necessidade de conciliar as tarefas domésticas e trabalho durante a pandemia.

Em um país como o Brasil, que faz amplo uso da mão de obra doméstica, muitos podem ter esquecido que a primeira vítima fatal da COVID-19, no Rio de Janeiro, foi uma diarista.

Cleonice Gonçalves contraiu a doença de sua patroa, que se encontrava em quarentena após chegar da Europa, e faleceu em 22 de março do fatídico ano de 2020.

Futuro perdido

A falta de perspectiva futura, advinda sobretudo da crise econômica, é fator essencial na dificuldade em nos situarmos no tempo em 2020. 

"A dificuldade de fazer planos para o futuro, associado a falta de perspectivas em relação aos próximos acontecimentos, sem descartar o medo do vírus e da morte, nos faz ter uma dimensão do tempo mais densa e possivelmente angustiante, já que fica muito difícil se localizar", lembrou Marques.

Nessas condições, podemos "oscilar [entre] uma espera que se assemelha a uma prisão -'quando a pandemia passar eu vou...'- e um tempo que se abre ociosamente produtivo", disse a psicanalista.

© AP Photo / Brynn AndersonJovem participa de cerimônia de formatura, acompanhada por somente nove colegas de turma e com presença reduzida de familiares, em Cusseta, Georgia, EUA, 15 de maio de 2020
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Jovem participa de cerimônia de formatura, acompanhada por somente nove colegas de turma e com presença reduzida de familiares, em Cusseta, Georgia, EUA, 15 de maio de 2020

As incertezas em relação ao futuro têm forte impacto na saúde mental dos brasileiros. Pesquisa divulgada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) aponta que 80% da população brasileira se tornou mais ansiosa em 2020.

Para os jovens, a sensação de futuro interrompido é mais exacerbada. Neste ano, os projetos de uma geração inteira de estudantes ficaram suspensos, como o adiamento do ENEM, confirmado em maio deste ano, após semanas de polêmica e campanhas publicitárias duvidosas.

No fim deste ano, a sensação de esgotamento mental tem levado muitos a decretar um fim ilusório da pandemia, voltando a frequentar praias, restaurantes e festas, em uma tentativa de aplacar a ansiedade após um período tão estressante.

© AP Photo / Sunday AlambaGarotas andam de óculos escuros pelas ruas de Lagos, na Nigéria, 31 de julho de 2020
2020: como as turbulências desse ano difícil afetaram a nossa noção de tempo  - Sputnik Brasil
Garotas andam de óculos escuros pelas ruas de Lagos, na Nigéria, 31 de julho de 2020

A tentativa desesperada de retomar a "vida normal" pode ser uma forma que alguns de nós encontra para lidar com a distorção do tempo causada pela pandemia da COVID-19.

"Se estamos em um momento de suspensão daquilo que dava limites concretos ao que chamamos de tempo, sem dúvida isso afeta coletivamente nossa percepção do mesmo e o torna [...] distorcido. Porém, cada distorção é única", concluiu Marques.

O ano de 2020 foi marcado pela propagação mundial do novo coronavírus, que infectou mais de 78 milhões de pessoas e vitimou quase dois milhões. O Brasil é o segundo país com maior número de mortes, 189.220 de óbitos no total, e o terceiro em número de casos, com 7.365.517, atrás somente dos EUA e da Índia, de acordo com a Universidade Johns Hopkins (EUA).

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