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Revolta da Vacina: por que parte dos brasileiros teme imunização contra COVID-19?

© Folhapress / Mateus Bonomi / AGIFAção de vacinação contra H1N1 no Ceasa de Brasília em 9 de novembro de 2020
Ação de vacinação contra  H1N1 no Ceasa de Brasília em 9 de novembro de 2020 - Sputnik Brasil
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Há 116 anos, estourava, no Rio de Janeiro, um grande motim contra uma tentativa das autoridades de realizar uma vacinação em massa contra a varíola, motivado pela desinformação, descrença nos avanços da ciência e desconfiança em relação ao Estado.

O presidente Jair Bolsonaro reafirmou ontem (9) que não pretende realizar uma vacinação obrigatória contra a COVID-19 após a compra de uma vacina aprovada pelo Ministério da Saúde e certificada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Em meio a notícias falsas sobre imunizantes, campanhas de desinformação e disputas ideológicas em torno das empresas produtoras, e mais esse posicionamento do chefe de Estado, alguns profissionais da área de saúde temem que o Brasil repita um cenário semelhante ao visto no início do século XX, quando parte da população do Rio de Janeiro se rebelou contra uma tentativa de vacinação em massa obrigatória, contra a varíola, na então capital federal, episódio que ficou conhecido como Revolta da Vacina. 

​A atual resistência à imunização, segundo o médico Sylvio Provenzano, ex-presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (Cremerj) e diretor do Serviço de Clínica Médica do Hospital dos Servidores do Estado, teve início no final do século passado, quando o ex-cirurgião britânico Andrew Wakefield publicou, em 1998, um artigo com informações falsas culpando a vacina contra o sarampo por casos de autismo em crianças.

Mesmo tendo sido desmentido, Wakefield levou vários pais a decidirem não vacinar os seus filhos. Posteriormente, o médico acabou tendo sua licença cassada por conta de acusações de fraude, mas suas teorias provocaram o ressurgimento do sarampo no Reino Unido, país que luta até hoje com surtos recorrentes da doença. 

"E pessoas de várias partes do mundo — não me refiro apenas ao Brasil —, nos Estados Unidos, na Inglaterra, na Itália, resolveram, evidentemente, levantar a bandeira de ser contra a vacina", explica o especialista em entrevista à Sputnik Brasil. 

​As vacinas mudaram a história da medicina, erradicando doenças como poliomielite e varíola, combatendo a meningite, a rubéola e outras. Portanto, a imunização provocada pelas vacinas deve ser exaltada, avalia Provenzano.

"Queira Deus que um dia tenhamos a vacina para a COVID-19, porque, aí, a gente vai ter uma segurança maior do que aquela que a gente tem hoje."

Assim como foi em 1998, quando informações não verdadeiras levaram a uma grande desconfiança em relação às vacinas, hoje, as chamadas fake news também criam um sério risco à vacinação, acredita o médico.

"Desacreditar os cientistas e os médicos é um processo que, na realidade, não começou agora, com a COVID-19. É algo que há muito tempo a gente tem percebido", afirma. "Desacreditar a ciência é um caminho que a gente não deve percorrer. A ciência deve ser estimulada. E vivemos em um país onde o desapreço pela educação, pela cultura, infelizmente, são quase uma regra. E essa situação precisa ser mudada. As futuras gerações precisam ter apreço pela leitura, precisam ter apreço pelos professores, pelo ensino. Precisamos acreditar que a ciência pode fazer a diferença." 

Na época da Revolta da Vacina, além do baixo nível de informação das pessoas, existia, de acordo com a cientista política Clarisse Gurgel, professora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), muita desconfiança em relação ao Estado, que se apresentava como uma força coercitiva estranha à sociedade. Assim, a população sempre olhava com maus olhos para qualquer tipo de iniciativa pública, governamental. E essa falta de conscientização, para a especialista, não diminuiu, permanecendo até hoje.

"Eu diria que, hoje, com o que a gente identifica como uma americanização crescente da população brasileira, essa conscientização se reduziu ainda mais. Porque ser americanizado significa se ater ainda muito mais às representações, imagens das coisas, do que, propriamente, às coisas como elas são na sua realidade", analisa a professora, também ouvida pela Sputnik.

Para Gurgel, nos últimos anos, a sociedade brasileira caminhou para o neopentecostalismo, para um pragmatismo e para uma doutrina americanista, levando a uma "secundarização de tudo que dissesse respeito a um raciocínio mais sofisticado e a uma abordagem mais aprofundada de qualquer fenômeno". Como resultado, a "tomada de consciência" teria sido mais comprometida, em uma espécie de "império das imagens" e das representações.  

​Fora essas mudanças, a cientista política também atribui ao avanço do neoliberalismo no país parte da responsabilidade por aumentar a distância entre Estado e população, fazendo crescer, dessa forma, a desconfiança popular em relação às iniciativas governamentais. 

"Eu diria que aumentou [a desconfiança], principalmente a partir do Fernando Henrique Cardoso, com o neoliberalismo, que, com as reformas do Estado, reduziu ainda mais a participação do poder público na vida cotidiana da sociedade, precarizou serviços, criou uma cultura de apreço e de valorização muito mais da iniciativa particular, privada, do empreendedorismo, do que, propriamente, de políticas do governo, políticas públicas mesmo ou medidas de Estado. Então, esse afastamento crescente, a partir do neoliberalismo, fez com que essa desconfiança crescesse ainda mais" explica. "Isso faz com que revoltas da vacina sejam revividas e reexperimentadas."

Ainda de acordo com a acadêmica, em cenários de miséria, fome e muito desemprego, como é o cenário do Brasil atual, é normal que se identifique um apego maior ao misticismo, à religião, à crença, em detrimento da ciência. 

"Se você soma todos esses fatores, isso ajuda a explicar essa resistência às vacinas."

Nesse contexto, o presidente Jair Bolsonaro, segundo a professora, carrega uma enorme responsabilidade por promover um cenário de "absoluta ignorância", ao sinalizar, na posição de chefe, que o temor das massas em relação ao Estado nessa situação é "um temor razoável". E, de outro lado, ela também responsabiliza as chamadas "forças progressistas" por não cumprir o seu papel de conscientizar a população brasileira no sentido de superar essa "consciência ingênua". 

Devido à disseminação de fake news e à ausência de um instrumento de propaganda nacional em defesa da vacina, Clarisse Gurgel diz não acreditar na possibilidade de o Brasil ter uma campanha de vacinação em massa contra a COVID-19. Isso porque, dada a posição do governo federal sobre o tema, o que restaria seriam as iniciativas locais, municipais e estaduais, "que se mostraram ineficazes" no combate à propagação do novo coronavírus até agora.

"E que vão revelar, aí, os limites de políticas públicas a nível local, indicando a importância da centralização de determinadas políticas públicas quando correspondem a uma demanda a nível nacional."

Gurgel avalia que a ciência, assim como o Estado, ao longo da história do Brasil, se apresentou, muitas vezes, afastada dos interesses da população, de maneira que sua descredibilização seria muito mais do que uma tendência recente. E, para mudar essa relação, segundo ela, deveria haver um movimento que tire o foco do mercado e dos ganhos econômicos e coloque a ciência, efetivamente, a serviço do povo brasileiro.

"A gente já teve um Brasil muito mobilizado, com uma consciência maior, em especial nos anos 1920, 1930. E essa consciência foi absorvida pelas universidades. E, dessas universidades, foi absorvida pelo mercado. É preciso fazer, agora, o caminho contrário: do mercado para as universidades e das universidades para a sociedade." 

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