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Tráfico de animais no Brasil abastece mercado interno e aproveita falhas na lei, diz ambientalista

© Foto / Marco Freitas / Geógrafo, Zoólogo, Analista Ambiental do ICMBio (arquivo pessoal)Pássaros apreendidos em operação da ICMBio contra tráfico de animais
Pássaros apreendidos em operação da ICMBio contra tráfico de animais - Sputnik Brasil
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Segundo jornalista e ambientalista Dimas Marques, a noção cultural de que animais silvestres podem ser bichos de estimação alimenta o mercado ilegal no Brasil.

O tráfico de animais voltou aos noticiários no Brasil nas últimas semanas. A polícia encontrou indícios de um grupo organizado atuando no Distrito Federal, após um estudante ter sido picado por uma naja, que criava dentro do apartamento em que mora com os pais. O incidente desencadeou uma ampla investigação, ainda em andamento.

As informações da Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (Renctas) indicam que a atividade no Brasil tira 38 milhões de animais das matas anualmente e alimenta um mercado estimado em R$ 3 bilhões.

O editor-chefe do site Fauna News e membro da coordenação do coletivo Grupo de Ação Política de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (GAP Trafi), Dimas Marques, disse à Sputnik Brasil que o tráfico de animais no Brasil, em grande parte, é voltado para o mercado interno.

"O tráfico de animais no Brasil é estruturado para abastecer o mercado interno. Tem casos de envio de animais para o mercado externo, mas também recebemos animais de fauna exótica não nativa no Brasil. A grosso modo, o tráfico de animais no Brasil é voltado para o mercado Pet. As pessoas têm 'necessidade' de ter bichos de estimação. Existem estimativas de que cerca de 60% a 70% de todos os animais silvestres comercializados no Brasil pelo tráfico sejam para abastecer o próprio mercado interno. Assim, de 30% a 40%, no máximo, iriam para fora do Brasil", explicou Dimas Marques.

Foco em repressão

O jornalista, que também é coordenador técnico da ONG Profauna - Proteção à Fauna e Monitoramento Ambiental (Ubatuba - SP), destacou que, historicamente, o combate ao tráfico de animais silvestres é muito vinculado às políticas de repressão e às ações da polícia ou do Ibama, o que, em sua opinião, seria um equívoco.

"Só existe tráfico de animais no Brasil porque tem gente que compra esses animais. Uma política de combate e redução do tráfico no Brasil deveria e deve passar, necessariamente, por uma questão de educação ambiental, pela conscientização da população do problema que é comprar esses animais para manter como bichos de estimação. É o primeiro ponto que tem de ser bastante colocado em evidência, porque repressão pura e simples não vai resolver o problema do tráfico de animais", afirmou o interlocutor da Sputnik Brasil.

Para o jornalista, a política repressiva do tráfico de animais também é falha em função da estrutura oferecida aos agentes de fiscalização da Polícia Militar ou do Ibama para realizarem essa função. No caso dos estados, que têm as polícias ambientais vinculadas à Polícia Militar, poucos possuem uma polícia ambiental realmente estruturada, bem como agentes em quantidade suficiente para cumprir essa função.

Os problemas também atingem o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Ibama realiza a fiscalização supletiva aos estados, atuando nas fronteiras e com mais foco em tráfico internacional e grandes quadrilhas. Já o ICMBio atua quando o tráfico envolve unidades de conservação.

"A gente tem acompanhado o desmonte desses órgãos de fiscalização pela atual gestão federal. Não que antes não houvesse problema. Historicamente esses órgãos passam por problemas. O próprio Ibama, por exemplo, já delegava apenas 1% de sua verba para fiscalização ao controle da fauna", destacou o entrevistado.

Ou seja, o tema não é uma prioridade no Ibama. Boa parte da estrutura do instituto é voltada para os licenciamentos e o sucateamento da estrutura de fiscalização federal gera problemas ainda maiores.

Legislação ineficiente

A Lei de Crimes Ambientais, no seu artigo 29, prevê uma pena de seis meses a um ano por tráfico de animais silvestres. Por outro lado, a legislação não determina prisão preventiva para crimes com menos de quatro anos de pena.

O tráfico de fauna é considerado crime de baixo potencial ofensivo, ou seja, como as penas previstas são menores de quatro anos, o infrator não responde por seu crime em regime fechado durante a parte processual, se esse for o entendimento da autoridade.

"Quem é flagrado traficando animais fica sujeito à transação penal. O Ministério Público é obrigado a oferecer a transação penal. O sujeito vai assinar uma multa, vai pagar uma cesta básica, ou vai cumprir uma atividade comunitária. Em troca, o Ministério Público não oferece denúncia ao judiciário. Ou seja, não há início de um processo judicial", destacou o jornalista.

Para Dimas Marques isso faz com que o "tráfico de animais seja um crime da impunidade", com raríssimos casos de condenação. Ele defende mudanças na legislação, endurecendo as penas por tráfico de animais.

"Isso quer dizer que a gente tem que tipificar o tráfico de animais na nossa Lei de Crimes Ambientais. Por que, por incrível que pareça, não existe o tipo Tráfico de Animais. Você tem no artigo 29 da Lei de Crimes Ambientais, as atividades envolvidas no tráfico de animais, mas ali você está colocando no mesmo saco, numa mesma categoria, aquela pessoa que é um criador doméstico ilegal, aquela pessoa que tem um passarinho ilegal na gaiola, ou um papagaio, e um trio que foi detido no município de Leopoldina (Minas Gerais) pela Polícia Rodoviária Federal com 1456 jabutis dentro de um veículo Palio", disse o interlocutor da Sputnik Brasil.

O coordenador da Profauna revelou que esses mesmos três sujeitos foram detidos dois dias antes em Jequié, na Bahia, com 50 ferros, um pássaro bastante requisitado no mercado ilegal.

"Eles foram detidos, levados para a delegacia, assinaram um termo circunstanciado de ocorrência policial (TCO), se prontificando a comparecer perante o juiz quando forem convocados. Dois dias depois, esse mesmo trio foi detido em Minas Gerais com 1459 jabutis. Na delegacia de polícia de Leopoldina eles assinaram um outro TCO e saíram pela porta da frente. Se esses três sujeitos não forem traficantes profissionais de fauna, eu não sei o que são. Então é um problema de legislação absurda", ponderou o especialista.

Dados consolidados

Coletando informações de batalhões de Polícia Florestal, do Ministério Público Federal, Polícia Federal, Ibama, de ONGs brasileiras e internacionais, universidades e centros de pesquisa, a Renctas lançou, ainda em 2001, o Relatório Nacional sobre o Tráfico de Fauna Silvestre, apresentando uma estimativa do funcionamento do mercado ilegal de animais silvestres. Esses dados, no entanto, nunca foram atualizados.

"A gente vai completar 20 anos em que não se realiza nenhuma pesquisa. A última pesquisa feita é de 2001 e foi realizada por uma ONG. O poder público brasileiro nunca realizou uma pesquisa para dimensionar o tráfico de fauna. E esse número de 2001 estima que 38 milhões de animais silvestres nativos brasileiros são retirados da natureza todos os anos para abastecer o tráfico de animais. Não estão sendo contabilizados aí os peixes e os invertebrados", disse Dimas Marques.

O ambientalista destacou a importância do tráfico de peixes ornamentais, que saem da região do Amazonas para Colômbia de modo a abastecer todo o mercado dos Estados Unidos. Além disso, ele chamou a atenção para o tráfico dos invertebrados, como aranhas e escorpiões, e algum tipo de envolvimento em biopirataria, por utilização das substâncias de venenos desses animais por laboratórios. Esses dados não foram computados no estudo da Renctas e continuam sendo uma grande incógnita.

A situação ficou mais complexa ainda em 2011, quando entrou em vigor a Lei Complementar 140, que passou a boa parte da gestão da fauna para os estados. Uma boa parte da repressão e das apreensões desses animais é feita pelas polícias militares ambientais e não mais pelo Ibama.

"Por meio de apreensões você tenta chegar a um universo aproximado de animais que são retirados da natureza para o tráfico. Antes a gente podia centralizar uma boa parte dessas informações por meio do Ibama. Com a Lei Complementar 140 os animais passam a chegar diretamente aos centros de triagem dos estados, que estão fazendo esse acompanhamento hoje. Então dificultou muito você contabilizar isso, já que está descentralizado e não há qualquer iniciativa de centralização desses dados", lamentou o entrevistado.

Educação ambiental

No Brasil, com toda sua biodiversidade, é "estranho e absurdo", na avaliação de Dimas Marques, não ter uma política nacional de gestão da fauna. Dessa forma, os projetos de educação ambiental também ficam comprometidos.

"Existem iniciativas pontuais no país todo. Muitas delas com sucesso. Mas elas são pontuais e de esforços locais. Por exemplo, no próprio Ibama do Piauí existe um projeto, feito pelos servidores do Ibama, de educação ambiental para crianças, com música, com vídeos no Youtube, com cartilhas, que posteriormente foi replicado pelo Ibama no Rio Grande do Sul. Mas são iniciativas próprias. Se o Ibama de cada estado não quiser fazer fica complicado", alertou o ambientalista.

O interlocutor da Sputnik Brasil destacou diversas iniciativas implementadas pelas ONGs, como o ProFauna, de Ubatuba, com iniciativa ambiental. A associação Mata Ciliar em Jundiaí, também possui um centro de recuperação de animais silvestres que recebe inúmeros espécimes oriundos das apreensões com o tráfico.

"Mas são iniciativas pontuais, esforços regionais e locais. Nada que seja coordenado e nada que tenha um olhar do poder público como aglutinador desses esforços com um objetivo comum. A educação ambiental para combater o tráfico de fauna no Brasil, em linhas gerais, vive de esforços locais e ela é pífia em termos de atuação do poder público", lamentou Marques.

Animal silvestre não é Pet

Uma das raízes do problema, segundo Dimas Marques, seria a própria noção cultural e histórica de que animais silvestres podem ser bichos de estimação. Em uma das raras iniciativas de controlar a fauna nativa, o governo aprovou, ainda em 1967, a Lei de Proteção à Fauna 5.197, que prevê a comercialização de animais silvestres legalizados, autorizando criadouros registrados, onde se criam animais requisitados como cobras, jiboias e araras.

"No meu entendimento e de muitos ambientalistas que atuam nessa área, isso é um grande equívoco por parte do Estado brasileiro. Culturalmente, se o Estado permite que você possa comprar animal silvestre como bicho de estimação [...] ele está reforçando na cultura, no hábito e no senso comum da sociedade que animal silvestre pode ser bicho de estimação. E é esse conceito que faz com que as pessoas busquem o tráfico de animais, busquem nas feiras nos fins de semana de cidades de interior ou na internet animais silvestres para serem comprados", afirmou o jornalista.

Segundo ele, um papagaio-verdadeiro comercializado legalmente, com nota fiscal, custa R$ 3.500 ou mais. Em uma feira, por outro lado, a mesma ave pode ser comprada por menos de R$ 150. Sem uma fiscalização eficiente e uma legislação rígida, o mercado legalizado somente incentiva o tráfico.

"Falar que animal silvestre, mesmo criado ou reproduzido em cativeiro legalizado, não sofre é bobagem", alegou o entrevistado.

Dimas Marques lembra que animais silvestres não passaram pelo processo de domesticação de milhares de anos, assim como os cães e os gatos, para estar na dependência e conviver bem com os humanos.

"É um absurdo defender a legalização e manutenção do comércio legalizado de animais silvestres, porque isso contribui para a manutenção da cultura de que animal silvestre pode ser Pet, que é o fundamento do tráfico no Brasil. Além disso, você está desconsiderando o bem-estar desses animais", concluiu.
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