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Entre mortes e traumas, 2º semestre inicia sem previsão de volta à normalidade

© Sputnik / Sergei MoninTorcedores brasileiros apreensivos, no Rio de Janeiro, com o jogo entre Brasil e México pelas oitavas de final da Copa
Torcedores brasileiros apreensivos, no Rio de Janeiro, com o jogo entre Brasil e México pelas oitavas de final da Copa - Sputnik Brasil
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Após um semestre que pareceu ter durado uma década, os brasileiros sonham com uma retomada da normalidade pré-pandemia, mas os riscos permanentes e os altos 'custos' da crise põem em xeque os planos para a segunda metade do ano.

Há meses, o Brasil e o mundo vêm lidando com uma série de desafios impostos pela pandemia da COVID-19, que, por toda a sua dimensão, tem impactado os mais variados aspectos da vida, seja no sentido biológico em si, no âmbito econômico, social, político ou cultural.

Hoje, apesar da flexibilização do isolamento em diversas partes, o consenso que se tem é de que o retorno à normalidade está diretamente ligado à criação e distribuição de uma vacina contra essa doença, mas, até o momento, não se sabe ao certo quando será possível lançar mão dessa importante arma na guerra contra o novo coronavírus.

Sem vacina, as únicas armas disponíveis até o momento são a distância e a higiene. Sair às ruas apenas quando estritamente necessário e utilizando máscara e álcool em gel. Para sonhar com uma volta à normalidade, é preciso seguir sacrificando o desejo do contato social, pois, uma vez contaminada, não há como saber se a pessoa terá a sorte de não apresentar qualquer sintoma ou se desenvolverá uma infecção respiratória aguda, podendo resultar em morte. É nessa tecla que bate a grande maioria dos médicos. 

​"Nós estimamos, aqui no Brasil, que um pouco mais de 30% da população já tenha anticorpos circulantes contra o coronavírus", afirma em entrevista à Sputnik Brasil o médico Sylvio Provenzano, ex-presidente do Conselho de Medicina do Estado do Rio de Janeiro e diretor do Serviço de Clínica Médica do Hospital dos Servidores do Estado. "O grosso da população, mais de 50%, não possui esses anticorpos. Portanto, suscetível a ter a infecção pelo SARS-CoV-2 e desenvolver a COVID-19, eventualmente, na forma grave."

Segundo o especialista, o isolamento social proposto como medida administrativa teve, desde o início, o objetivo de permitir que o poder público cumprisse o seu dever de prestar serviço de saúde a todos, evitando um colapso da rede de hospitais. Por outro lado, ele admite que a flexibilização é importante, uma vez que, para aqueles que estão "pagando um preço alto pelo confinamento", os danos econômicos também são devastadores. Mas essa retomada precisa ser cuidadosamente planejada, de maneira a ter um "risco de contágio extremamente baixo". 

"Aglomeração é tudo aquilo que, neste momento, a gente não quer e que o vírus deseja, para ele poder voltar com toda força, o que, evidentemente, pode voltar a necessitar de um novo isolamento ou, quem sabe, até de um lockdown. O que seria, do ponto de vista econômico e do ponto de vista psicológico, péssimo, sob qualquer análise que se faça."

Para Provenzano, a mudança comportamental obrigatória ocasionada pelo surto do novo coronavírus, amplamente propagada como "o novo normal", pode se tornar um hábito mesmo após o surgimento de uma vacina. 

"A população brasileira talvez seja, no mundo, uma das que mais banhos toma. Mas, no entanto — uma observação minha —, pouco lavava as mãos. E a gente sabe que, para a gente evitar pegar o vírus, a lavagem das mãos frequente é importante", argumenta. "Essa seria uma mudança de comportamento que viria em muito boa hora, no meu entender." 

​Além de difundir a prática de lavagem das mãos, o médico espera que esse período de isolamento seguido pelo surgimento de uma vacina contra a COVID-19 também faça com que as pessoas passem a valorizar mais o "contato humano", que, nos últimos anos, segundo ele, parece ter sido um pouco negligenciado. 

"Eu acho que as pessoas estão meio cansadas de ficarem conectadas nas redes sociais. Estamos sentindo falta daquilo que nos é mais valioso, que é o contato humano."

Brasil deve encarar agudização de situação social premente

Também em entrevista à Sputnik Brasil, o sociólogo Dario Sousa e Silva, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), descarta a possibilidade de uma volta imediata ao "ponto anterior" à pandemia após eventual criação e comercialização de uma vacina eficaz contra o novo coronavírus. 

​De acordo com ele, o impacto do surto nos diversos aspectos da vida em sociedade não permite imaginar um retorno ao mesmo cenário ou mesmo a algo "próximo disso", principalmente se considerarmos o ambiente de possível recessão econômica a nível global e, no Brasil, intensificado por medidas que já vinham sendo tomadas antes da crise da COVID-19. 

"Teremos a agudização de uma situação social muito premente. Tivemos uma ligeira queda da pobreza extrema por conta do início da distribuição do auxílio temporário pelo governo. Mas, uma vez que é temporário, que já há previsão de redução do valor e até de retirada desse auxílio, o que nós vamos ter imediatamente não vai ser um retorno dessas pessoas para o mercado de trabalho", declara.

Silva frisa que é importante ter em mente as histórias pessoais dos indivíduos que estão tendo que lidar com a face mais sombria da pandemia, que "não existem só nos números". 

"Existe um trauma social muito sério, uma clivagem muito clara entre quem pôde se preservar da doença e quem não pôde se preservar da doença. Nós temos a exposição e a presença na agenda pública de populações em situação de rua, entregadores por aplicativo e demais trabalhadores precarizados."

Com mais de 60 mil mortes provocadas pela COVID-19 e mais de 1,4 milhão de casos confirmados da enfermidade, em vez de retorno à normalidade, o acadêmico teme uma piora da situação no curto prazo devido às medidas de flexibilização que vêm sendo adotadas pelo Brasil antes de o país atingir o pico do surto. 

"Não é novo normal, é agudização da crise", afirma. 

Segundo o sociólogo, os recursos que têm sido priorizados pelo governo brasileiro durante a crise são os de socorro às instituições financeiras, quando, claramente, o foco deveria ser outro. 

"No momento em que o Brasil entrou em uma queda da atividade econômica, em uma redução aguda do Produto Interno Bruto, as instituições financeiras e bancárias estavam batendo recorde de lucratividade. Então, neste momento, quem deve ser socorrido é quem precisa ser socorrido economicamente. Isso não se trata de filantropia, isso se trata de investir pragmaticamente na modificação de uma condição sanitária e salvar vidas. E, salvando vidas, a gente salva a economia. É um falso dilema separar essas duas coisas. Só trabalhadores vivos produzem riqueza."

Agravamento da crise teria impacto proporcional no custo político

Uma das consequências graves do surto do novo coronavírus no Brasil foi também a deterioração da situação política, que já se encontrava em crise muito antes da confirmação do primeiro caso da COVID-19 em território nacional.

Os embates do executivo com o legislativo e o judiciário aumentaram, assim como a pressão de opositores sobre o presidente Jair Bolsonaro e outros membros de seu governo, acusado, internamente e também no exterior, de minimizar a gravidade da pandemia e tomar atitudes irresponsáveis em relação a ela. 

​A crise sanitária e a "falta de habilidade do governo na coordenação" do enfrentamento à pandemia e suas consequências diretas e indiretas são "apenas um capítulo da história da crise política recente" no Brasil, segundo defende a cientista política Ariane Roder, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

"O conflito entre os poderes ensejado pelo poder executivo, a péssima relação do presidente com governadores e prefeitos na condução de soluções conjuntas, a suspeição de interferência na Polícia Federal e 'fatos novos' envolvendo diretamente a família Bolsonaro, com a prisão de Queiroz, o avanço nas investigações sobre fake news e o suposto gabinete do ódio, são componentes conjunturais que têm tornado o ambiente político muito instável, com desdobramentos que extrapolam os fatores da pandemia", explica.

A especialista argumenta que, se, por um lado, a "ineficácia do governo" em sua atuação frente à pandemia até o presente momento traz mais instabilidade, por outro, o isolamento social tem inibido a realização de manifestações de rua de grandes proporções, o que poderia gerar um agravamento desse cenário.

"Para acompanhar o custo político da pandemia para o presidente Bolsonaro será necessário acompanhar as pesquisas de opinião. Mas há, certamente, uma hipótese muito forte que o agravamento da crise terá um impacto diretamente proporcional no custo político dela derivada e, consequentemente, na popularidade do presidente da República."

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