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Miguel, presente: morte de criança expõe realidade de milhões de mães brasileiras

© Folhapress / Rivaldo GomesVista interna de centro educacional em São Paulo (SP)
Vista interna de centro educacional em São Paulo (SP) - Sputnik Brasil
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A morte do menino Miguel, vítima de uma queda de mais de 35 metros, nesta semana, no Recife, gerou comoção na sociedade brasileira, em um momento em que muitas mães e pais se adaptam aos desafios da criação em tempo integral de seus filhos.

Crianças em ambientes de trabalho dos pais, pais que faltaram os trabalhos porque não tinham com quem deixar os filhos, mães que perderam o emprego ou que precisaram deixá-lo para dar mais atenção aos filhos sempre foram situações comuns no cotidiano de milhões de brasileiros. E essas situações ganharam novos contornos durante a pandemia da COVID-19.

Quando autoridades estaduais e municipais decidiram impor medidas de isolamento social para conter a propagação do novo coronavírus, muitos pais, que passaram a trabalhar em regime de home office, se viram forçados a administrar melhor o tempo e o espaço para cumprir suas obrigações profissionais e familiares.

Com creches e escolas fechadas, muitos tiveram que dar mais atenção do que de costume às necessidades diárias de suas crianças ou adolescentes. Alguns tiveram que fazer isso e também estabelecer um revezamento de seu equipamento de trabalho — em geral, um computador — para que os jovens pudessem continuar estudando em casa. Outros tiveram que continuar indo ao trabalho apesar dos riscos ligados à maior crise sanitária do século, e mesmo com salários reduzidos em vários casos. 

Uma dessas pessoas que teve que continuar trabalhando in loco mesmo com os riscos de contaminação pelo novo coronavírus foi a empregada doméstica Mirtes Renata Santana de Souza, mãe de Miguel Otávio Santana da Silva, de cinco anos, que morreu após cair do nono andar de um prédio no Recife, Pernambuco, nesta semana. 

O incidente aconteceu na última terça-feira (2), na região central da capital pernambucana, quando Mirtes precisou descer para passear com o cachorro de seus empregadores e deixou o seu filho aos cuidados da patroa. Esta, por motivos ainda a serem esclarecidos, deixou o menino sozinho no elevador do edifício. Mas, em vez de descer para procurar a mãe, Miguel acabou subindo e, posteriormente, se acidentando fatalmente, ao cair de uma altura de 35 metros.

A empregadora de Mirtes, Sarí Corte Real, primeira-dama de Tamandaré, foi detida logo após o ocorrido, mas liberada depois de pagar fiança no valor de R$ 20 mil, a fim de responder em liberdade ao crime de homicídio culposo, quando não há a intenção de matar. 

Mirtes não está sozinha

"É difícil até falar sobre o ocorrido com o Miguel. Eu tenho um filho na idade, e ouvir o relato da mãe me coloca um pouquinho no lugar dela, porque nem de longe eu posso dizer que entendo a dor dela. Porque, graças a Deus, meu filho está com vida. Mas, assim como ela, eu dependo de alguém pra ficar com o meu filho. Na minha casa é somente eu e ele", conta em entrevista à Sputnik Brasil Simoni Cabral, mãe e funcionária de recursos humanos de uma empresa do Arujá, em São Paulo. 

​Assim como Mirtes, Simoni está tendo que trabalhar durante a pandemia, pois, devido à alta demanda de trabalho, seu departamento não está aderindo ao regime de home office. Sem escola, seu filho tem ficado sob os cuidados da avó, o que, por um lado, gera um alívio para Simoni, mas, por outro, também causa preocupação, já que sua mãe se encontra no chamado grupo de risco para a COVID-19, devido a medicamentos que afetam sua imunidade.

"Estou com ele todos os dias. Minha mãe se desloca à minha casa pra ficar com ele. Nas ocasiões em que minha mãe não pôde ficar com ele, recorri à madrasta dele. Mas ela está grávida, e eu acho arriscado tanto tirar o meu filho de casa como colocá-la em contato com ele. É um risco para os dois lados."

Simoni conta que a prefeitura de sua cidade não fornece qualquer tipo de ajuda para mães que precisam trabalhar e não podem deixar seus filhos sozinhos, e as creches, por sua vez, estão todas fechadas. Não fosse a mãe, ela não sabe como faria.

"Houve uma ocasião já no período da pandemia em que minha mãe ficou doente e eu precisei me impor na empresa, pedi dois dias de trabalho home office pra que minha mãe pudesse se recuperar e eu pudesse cuidar do meu filho", explica, revelando que também já chegou a levar o filho para o trabalho, mas antes da pandemia.

Diferentes, mas nem tanto, as histórias de Mirtes e de Simoni se somam às de outras milhões de mães que se veem obrigadas a se equilibrar entre alternativas mais ou menos difíceis para criar seus filhos e sustentar seus filhos. Era assim antes da pandemia, tem sido assim durante a pandemia e pode piorar com o levantamento parcial de restrições em algumas cidades brasileiras.

Pode ficar pior, mas deveria ser melhor

Em reportagem publicada na última quinta-feira (4), outras mães ouvidas pelo El País revelaram grande preocupação com o possível retorno ao trabalho antes da reabertura das escolas e creches de seus filhos. Isso porque se já era difícil conciliar os trabalhos em tempo integral, mais difícil pode ser encontrar uma solução para não deixar suas crianças sozinhas em casa. 

​O acidente que vitimou Miguel Otávio Santana da Silva poderia ter acontecido em outro lugar, em outras circunstâncias. Mas Mirtes poderia não ter que levá-lo ao trabalho se não tivesse que continuar trabalhando da mesma forma durante a pandemia ou se tivesse a quem recorrer. 

Para Simoni Cabral, quando não pode contar com a ajuda de sua mãe, a ideia de ter que deixar o seu filho, mesmo que por pouco tempo, com outra pessoa, sempre traz um pouco de insegurança. Essa insegurança, no entanto, é minimizada quando ela pode contar com um ambiente próprio para crianças e com pessoas preparadas para cuidar de crianças e outras crianças para interagir. Esses ambientes, também conhecidos como creches, deveriam ser mais numerosos e de mais fácil acesso para todos que precisam, ela acredita. 

"A morte do Miguel também se deu devido a uma negligência dos órgãos públicos, que não deram à mãe outra alternativa a não ser levar o filho ao trabalho. A morte dele não foi um acidente, foi um crime que poderia ter sido evitado se a mãe pudesse tê-lo deixado em um lugar adequado, sob os cuidados de pessoas capacitadas."

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