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Brasil é ameaçado pelos 'tiros de bala perdida na guerra comercial sino-americana'

© AFP 2023Caminhão descarregando, no porto chinês de Nantong, alimento para animais feito de soja importada do Brasil, agosto de 2018
Caminhão descarregando, no porto chinês de Nantong, alimento para animais feito de soja importada do Brasil, agosto de 2018 - Sputnik Brasil
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"A China não está comprando no Brasil, ela está comprando o Brasil." A frase, repetida por Bolsonaro, não causava maiores dissabores quando o presidente ainda era deputado. Mas desde que foi eleito, Jair Bolsonaro fez levantar sobrancelhas e tem estimulado cautela entre empresários do país que mais investe e que mais importa do Brasil.

Motivos para cautela chinesa não faltam. Ainda em fevereiro do ano passado, Bolsonaro se tornou o primeiro pré-candidato brasileiro a visitar Taiwan desde que o país reconheceu a autoridade de Pequim sobre todo o território chinês, na esteira da política de "Uma Só China" dos anos 70. Posteriormente, fez declarações duras quanto à privatização da Petrobras para chineses, dizendo que "passar uma estatal brasileira para uma estatal chinesa é atestado de incompetência".

Desde a eleição, o discurso pró-EUA em detrimento da China tem apontado sinais mais pragmáticos. Os números se impõem na balança: desde 2009, os chineses saltaram para a 1ª posição na participação de importações com o país, importando minério de ferro e soja aos montes e despejando um estoque de US$ 55 bilhões em investimentos diretos na cadeia produtiva brasileira (para efeito de comparação, até 2008 este valor era de US$ 1 bilhão).

© SputnikComércio entre o Brasil e a China
Comércio entre o Brasil e a China - Sputnik Brasil
Comércio entre o Brasil e a China

Professor do curso de Relações Internacionais na Universidade do Estado do Rio Janeiro, Maurício Santoro, voltou recentemente de uma viagem a Pequim e outras cidades da província de Guangdong. Convidado pela embaixada, foi conhecer oportunidades de negócio e cooperação bilateral entre Brasil e China. Voltou com um entendimento maior do que o governo e o empresariado chineses esperam de autoridades brasileiras neste novo momento político pelo qual atravessa o país.

Para Maurício, há "um interesse real chinês em estabelecer boas relações e cooperação com Bolsonaro". Mas a paciência, embora longa, não é inesgotável. Em recentes editoriais, People's Daily e Global Times — dois periódicos conhecidos por propagar a voz do Partido Comunista quanto a temas da política externa chinesa — recomendaram cautela a Bolsonaro ao avaliar o risco de se tornar um "Trump Tropical", em referência à política de enfrentamento do presidente americano em relação a Pequim. Paralelamente, diplomatas chineses faziam visitas regulares ao ministro da Economia, Paulo Guedes, na tentativa de acalmar os ânimos e conservar a montanha de dinheiro investida por aqui.

"Ao mesmo tempo que acenam com incentivos, os chineses sinalizam a possibilidade de retaliação. É uma mão dizendo 'vem pra cá, vamos fazer negócio, vamos conversar' e a outra chamando a atenção, dizendo 'se você não quiser cooperar, a gente está pronto para o enfrentamento, e isso vai trazer custos para você'", avalia Maurício Santoro, para quem a estratégia pode ser entendida como complementar, não conflitante.

A análise segue o mesmo tom do ministro conselheiro de Comércio da Embaixada da China no Brasil, Qu Yuhui. Em entrevista exclusiva à Sputnik Brasil, Qu diz que a China tem "grande respeito pela política externa brasileira, que é consistente e tem uma tradição pela independência, pela autonomia, pela diversificação de suas parcerias e respeito aos outros países". Ele alerta, porém, que a China também demanda deferência.

"Como são grandes países, os pensadores nem sempre vão pensar da mesma forma, mas se conseguimos respeitar um ao outro no regime político e no nosso modelo de desenvolvimento, seria um passo inicial importante para que nossa parceria não seja prejudicada", avalia.

Empresários esperam apreensivos o desenrolar de parcerias

Qu Yuhui diz ainda que parte do seu trabalho se resume não só à tratativa com autoridades brasileiras, mas também ao convencimento do empresário chinês a investir no Brasil. O ministro conta que, às vezes, é preciso coragem ao decidir investir no país.

"O nosso distanciamento é geográfico e cultural, o que, às vezes, atrapalha muito essa aproximação. Existem preocupações em relação a como os dois lados podem superar barreiras linguísticas, culturais, até formas de conduzir os negócios. Muitas vezes, a forma de se portar nas negociações pode complicar", conta.

Bandeira da China (imagem de arquivo) - Sputnik Brasil
Brasil e China amenizam mal-estar gerado na campanha eleitoral, diz economista
E se não bastam as barreiras burocráticas e as dificuldades próprias de países em extremos opostos do globo, declarações do governo tornam empresários chineses mais reticentes em iniciar atividades em terras tupiniquins.
Tyler Li é presidente da BDY Brasil, empresa chinesa especialista em geração de energia sustentável e com expertise na produção de painéis solares e carros movidos a eletricidade. Em 2013, ele liderou a iniciativa da empresa de se expandir para o Brasil, mudando-se da tecnológica Shenzen para Campinas, no interior de São Paulo.

A decisão partiu da análise da empresa em identificar no Brasil o segundo maior mercado de painéis fotovoltaicos no mundo (atrás apenas da própria China). Cinco anos depois, já são R$ 200 milhões investidos por aqui, incluindo duas fábricas (uma em Campinas e outra em Manaus, com planos para abrir uma terceira), 305 empregos diretos para brasileiros e parcerias de pesquisa na casa dos R$ 5 milhões com a Unicamp até 2020 (a empresa já conversa também com a Universidade Federal de Santa Catarina para desenvolver parceria semelhante com os alunos).

© Foto / Cesar Brustolin/SMCSTyler Li, presidente da BDY Brasil durante evento em Curitiba.
Tyler Li, presidente da BDY Brasil durante evento em Curitiba. - Sputnik Brasil
Tyler Li, presidente da BDY Brasil durante evento em Curitiba.

Li acompanhou com certa apreensão o discurso belicoso do candidato Bolsonaro. Embora veja melhoras desde a posse, o chinês tem apostado na cautela.

"Isso [a eleição de Bolsonaro] afetou mais as empresas chinesas que vêm ao Brasil comprar concessões, como aquelas interessadas em estações de energia ou geração de eletricidade. Nós estamos no mercado privado, ajudando a desenvolver uma tecnologia no Brasil, gerando empregos em uma área com grande potencial de desenvolvimento nos próximos 10 anos", avalia o executivo.

Li diz não acreditar em retaliações tarifárias por Bolsonaro a empresas chinesas seguindo o exemplo de Donald Trump. Para ele, a economia brasileira não tem a mesma força da americana e, portanto, não suportaria o impacto de medidas do tipo no curto e médio prazo. Por enquanto, ele segue o desenvolvimento das tratativas em Brasília.

"Quando Bolsonaro fez declarações contra a China, isso despertou preocupações, mas acredito que a equipe de comércio da nossa embaixada está desenvolvendo boas relações com o governo e que, após alguns meses, a relação vem melhorando", avalia.
É uma postura semelhante ao do vice-presidente mundial da GREE, Xie Dong Bo, que em novembro já tinha se manifestado em entrevista à Sputnik Brasil na sede da empresa em Zhuhai. Maior fabricante de ar-condicionado do mundo, a GREE ainda tem participação tímida no mercado doméstico brasileiro, mas já começa a fincar os pés na aclimatação de grandes obras, como foi o caso do Maracanã. "Nem a China nem ninguém poderá comprar o Brasil", declarou Xie.

Admitindo estar ciente das declarações de Bolsonaro sobre os investimentos chineses, Xie assumiu não "entender muito bem" o presidente, mas se diz confiante de que a participação da China no mercado brasileiro depende "menos de governo e mais de consumidores".

Guerra comercial entre EUA e China deixa Brasil "entre a cruz e a espada"

Não bastasse a já delicada relação entre o bolsonarismo e a China, um novo desafio se desenha no horizonte. Com a guerra comercial entre Pequim e Washington se encaminhando para um acordo, os chineses já sinalizaram a possibilidade de aumentar substancialmente a compra de soja americana em troca do levantamento de tarifas impostas por Trump a produtos chineses. A possibilidade de acordo chegou inclusive a ser aventada pelo presidente americano recentemente, durante o tradicional discurso do Estado da União realizado anualmente no Congresso dos EUA.

Seria um mau negócio para o Brasil: 43% de todo o volume de exportações brasileiras à China estão na soja e grãos derivados (vide infográfico). Navegar sobre águas tão turbulentas demandará um esforço diplomático que, para Maurício Santoro, atualmente não está em andamento. "Perderemos o acesso a um mercado que vinha crescendo nos últimos anos", admite o professor.

"Vamos precisar de uma diplomacia muito dinâmica e eficaz para tentar impedir que, diante destes acordos, o Brasil saia perdendo. Estamos entre a cruz e a espada, e neste momento, como o Itamaraty está muito instável, com um chanceler [Ernesto Araújo] dizendo coisas que muitas vezes as pessoas têm dificuldade de compreender, essa diplomacia eficaz fica perdida. Então é provável que entre estes tiros de bala perdida na guerra comercial sino-americana o Brasil saia perdendo", diz Santoro.

O professor pontua, porém, que mesmo com ganhos no curto prazo, em termos de estabilidade econômica internacional, também é de interesse do Brasil que estes dois gigantes do comércio internacional cheguem a um entendimento. A questão é saber qual dos grupos que disputam a influência externa dentro do governo Bolsonaro terá mais voz: os pragmáticos, os liberais ou os chamados "antiglobalistas".

"O que posso adiantar é que os antiglobalistas vão ganhar algumas batalhas, mas não todas. Especialmente no que diz respeito à China, a importância chinesa para o comércio exterior brasileiro é tão grande que em vários momentos o pragmatismo vai prevalecer", projeta.

Qu Yuhui faz votos de que o professor esteja certo. "A realidade vale mais que mil palavras. Pode haver ruídos, mas são transitórios e não atrapalham a essência da cooperação. O importante é respeitar as diferenças e construir parcerias para evitar ataques irresponsáveis, levianos e ignorantes. É a minha opinião pessoal", finaliza o ministro.

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