Por que Kiev e Moscou se confrontaram no estreito de Kerch e será que OTAN vai intervir?

© Foto / Assessoria de imprensa do departamento fronteiriço do Serviço Federal de Segurança da Rússia para a República da Crimeia  / Acessar o banco de imagensNavio Berdyansk detido pela guarda fronteiriça russa, estacionado no porto de Kerch
Navio Berdyansk detido pela guarda fronteiriça russa, estacionado no porto de Kerch - Sputnik Brasil
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O passado fim de semana foi marcado por uma tensão inédita entre Kiev e Moscou, provocada por uma confrontação marítima no estreito de Kerch, perto da península da Crimeia. A Sputnik consultou especialistas e explica o que está por trás do conflito e como este poderia evoluir.

No domingo (25), três navios da Marinha ucraniana — Berdyansk, Nikopol e Yany Kapu — cruzaram de forma ilegal a fronteira da Rússia, violando os artigos 19 e 21 da Convenção da ONU sobre o direito marítimo e sem avisar a parte russa sobre sua passagem. Ainda de acordo com as forças russas, as embarcações da Marinha da Ucrânia estiveram realizando manobras perigosas durante várias horas sem reagir às exigências dos navios russos que as acompanhavam.

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Não tendo recebido uma reação adequada, os marinheiros russos tomaram a decisão de usar armas, parando os navios ucranianos e sendo estes detidos.

Na sequência do incidente, a Suprema Rada, o parlamento da Ucrânia, aprovou a introdução da lei marcial por 30 dias em certas regiões do país ao longo da fronteira com a Rússia, bem como ao longo da costa do mar Negro e do mar de Azov, após a apresentação do respectivo projeto pelo presidente Pyotr Poroshenko.

O presidente russo, Vladimir Putin, caracterizou o incidente envolvendo navios russos e ucranianos no estreito de Kerch como uma "provocação organizada com antecedência".

O fato da violação de fronteira não pode ser debatido?

Para entender a essência do conflito, é indispensável perceber como é que o estreito de Kerch e o mar de Azov, aonde os navios ucranianos queriam entrar após terem saído do porto de Odessa, está regulado do ponto de vista do direito internacional. Os dois documentos principais nesse sentido são a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, datada de 1982 e usada globalmente, e um acordo bilateral russo-ucraniano firmado em 2003. Este, por sua vez, garante a liberdade de navegação para ambas as partes no respectivo território, porém, segundo uma emenda de 2007, qualquer navio que planeje efetuar essa passagem deve avisar o porto de Kerch com antecedência.

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Após o golpe de Estado que abalou a Ucrânia em 2014 e a posterior reunificação da península da Crimeia com a Rússia, Moscou passou a controlar ambas as margens do estreito de Kerch. Isto, por sua vez, pode gerar uma certa ambiguidade jurídica, especialmente tomando em consideração que grande parte dos países ocidentais não reconhece a Crimeia como território russo.

Porém, há um argumento que fala por si. Independentemente do estatuto da península, de fato, os navios ucranianos violaram as linhas demarcadas ainda antes da integração deste território na Rússia. Esta opinião é compartilhada por muitos especialistas, particularmente pelo cientista político independente russo, Aleksandr Asafov, entrevistado pela Sputnik Brasil.

"A questão é que eles [ucranianos] violaram uma fronteira que já estava em vigor muito antes do golpe de Estado que resultou na chegada ao poder das atuais autoridades de Kiev. Por isso, a questão da jurisdição da Crimeia neste caso nem sequer tem importância", sublinha o especialista.

Na opinião do interlocutor da Sputnik, julgando pelos documentos apresentados pelo Serviço Federal de Segurança da Rússia (FSB) em relação ao incidente, "é evidente que a violação da fronteira da Federação da Rússia foi feita de acordo com um plano maligno, foi completamente deliberada". O fato da própria ignorância das regras de segurança por parte de Kiev durante a passagem é agravado ainda pela presença de armas "em prontidão de combate" a bordo das embarcações, o que viola todas as normas não somente bilaterais, mas também internacionais, especifica Asafov.

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"Estas regras de atravessamento do estreito de Kerch e da passagem debaixo da Ponte [da Crimeia] são do conhecimento geral e têm sido observadas por todas as partes, inclusive pelos navios ucranianos, até o respectivo incidente. Por isso, devemos falar, claramente, sobre uma intenção, sobre um plano de fazer uma provocação. De fato, essa tarefa foi cumprida, mas, a meu ver, a provocação devia ter sido de uma envergadura muito maior que esta", explica o analista.

Ainda de acordo com Oleg Matveichev, professor da Escola Superior de Economia da Rússia e ex-assessor para a Política Interna do Kremlin, a questão sobre a possível existência de "duas verdades" nem pode ser considerada. "Tanto mais que os navios militares, quando foram avisados e lhes pediram para parar, não o fizeram — isto também é uma violação", acrescenta ele ao falar com a Sputnik Brasil.

Possíveis motivos da provocação

A versão predominante dos motivos para tal provocação deliberada é a consequente declaração da lei marcial e a sabotagem das eleições que não prometem nenhum sucesso para as autoridades atuais. Oleg Matveichev acredita: esta era a intenção inicial, mas havia também outros cenários que afinal não foram realizados. A propósito, o especialista prognosticava um incidente parecido com o do estreito de Kerch ainda um ano atrás.

"Previ isso por repetidas vezes, […] mas acreditava que ocorreria em terra. Só que em terra é mais complicado, por isso eles optaram pelo mar", conta. "Agora [depois da introdução da lei marcial], estão proibidas as manifestações, são possíveis detenções, espionagem, ou seja, há um regime muito mais facilitado para as forças de segurança nas regiões onde uma parte esmagadora da população fala russo e não sente simpatia nenhuma para com Poroshenko", argumenta o ex-assessor do presidente russo.

Evidentemente, nessas condições será muito mais fácil "tapar a boca" aos líderes da oposição nas respectivas áreas, tentando inclusive expulsar dali os baluartes da cultura russa, tais como os mosteiros da Igreja Ortodoxa Russa, por exemplo, prognostica o entrevistado.

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Conforme Aleksandr Asafov, provocações deste tipo já foram realizadas pela parte ucraniana, mas, evidentemente, não lograram o resultado procurado. Trata-se, por exemplo, do caso com a embarcação de pesca russa Nord, detida pelos guardas-costeiros ucranianos em 26 de março do ano corrente. O navio foi apreendido e enviado ao porto ucraniano de Berdyansk.

O capitão da embarcação, Vladimir Gorbenko, continua detido até hoje. Este foi apenas um de uma série de incidentes parecidos.

"Já faz muito tempo que têm ocorridos tentativas de provocar alguma resposta de força por parte da Rússia nas águas do mar de Azov […] Isso tudo são tentativas de provocar alguma reação de força para depois apresentá-la à comunidade internacional como um ato de agressão e pedir ajuda, influência e cooperação, bem como a realização do sonho principal ucraniano no mar de Azov", manifesta o cientista político.

Este sonho, por sua vez, tem uma história oriunda ainda desde o colapso da URSS. A coisa é que, na época, a Ucrânia de fato ficou privada de toda sua frota, e não consegue desenvolver os restos da antiga ou construir uma nova.

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"Entretanto, a Ucrânia tem uma experiência de 14 anos de realizar manobras conjuntas com os países-membros da OTAN nas águas do mar Negro. Claro que esta experiência lhes dá esperança, confiança e um sentimento de sua associação ao bloco. Eles [ucranianos] queriam muito expandir isso [as manobras] também às águas do mar de Azov, para que os navios da OTAN, estando de fato em um contato com os russos, exerçam uma pressão de força contra a Rússia", relata.

Isto, segundo o cientista político, pode ser observado até na escolha das tripulações que participaram da confrontação recente no estreito de Kerch.

"São todos pessoas que ou serviram em navios estadunidenses, ou manifestam algumas opiniões super-nacionalistas sobre as táticas de Rudeltaktik na luta contra a frota russa. Ou seja, foram tripulações escolhidas deliberadamente, que em certas condições facilmente se converteriam em mártires", resume.

O que acontecerá a partir de agora?

Contudo, observa Asafov, a Aliança Atlântica tem um "entendimento perfeito" do acordo russo-ucraniano de 2003, "tem toda a consciência" das consequências de entrada de quaisquer embarcações militares através do estreito de Kerch, por isso os planos ucranianos citados acima continuavam sendo apenas uma "fantasia", precisa o analista.

Mais provavelmente, a resposta do bloco militar se limitará aos apelos de reduzir o "grau de tensão", sem qualquer perspectiva de envolvimento militar.

"Simplesmente porque, em primeiro lugar, a Ucrânia não faz parte da Aliança. Todos entendem perfeitamente quem foi o autor desta provocação, que objetivos tinha, se foram realizados e que consequências terá, inclusive no sentido internacional e econômico, estou falando, claro, das sanções por parte dos norte-americanos. Mas a Aliança não aplicará força militar em qualquer caso, pois significaria um conflito militar direto com a Rússia, que para a OTAN e para todo o mundo pode terminar muito mal. É evidente que esta linha eles não cruzarão", assevera o interlocutor da Sputnik.

Já as provocações ucranianas podem continuar, opina Oleg Matveichev. "Se o provocador quer provocar, sempre vai fazê-lo, qualquer que seja o local. Não há medidas contra as provocações", analisa.

Porém, dado que a Ucrânia realmente "não quer guerra", mas tenta "resolver seus problemas internos", acredita ele, é possível que Moscou anuncie um regime reforçado de controle nos respectivos territórios marítimos, o que já conterá Kiev de possíveis outros planos do mesmo caráter.

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