Entenda briga diplomática entre Israel e Polônia sobre Holocausto

© AFP 2023 / GALI TIBBONPresidente polonês, Andrzej Duda, depositando uma coroa de flores na Parede dos Nomes durante visita ao Memorial do Holocausto Yad Vashem
Presidente polonês, Andrzej Duda, depositando uma coroa de flores na Parede dos Nomes durante visita ao Memorial do Holocausto Yad Vashem - Sputnik Brasil
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Passados quase 73 anos após a liberação da Europa da ocupação nazista pelas tropas soviéticas na Segunda Guerra Mundial, algumas questões que esta envolve continuam sendo extremamente dolorosas. Neste contexto, a Sputnik explica como Varsóvia tem repetidas vezes tentado "se branquear" dos pesadelos do passado.

Uma das tragédias mais discutidas até hoje é o Holocausto, a exterminação maciça dos judeus como parte do grande plano antissemita do Terceiro Reich. Para a "solução final" da questão judaica foram inclusive construídos numerosos campos de extermínio, onde morreram vários milhões de prisioneiros. A maior parte destes campos se situava no território da Polônia anexado pela Alemanha Nazista em 1939.

Perdidos na tradução?

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Em 27 de janeiro, milhões de judeus por todo o mundo celebraram o Dia Internacional da Lembrança do Holocausto, políticos de vários países, inclusive da Europa do Leste, fizeram suas declarações e mais uma vez expressaram que a humanidade deve se esforçar para nunca mais aconteça nada parecido.

Entretanto, já em 1º de fevereiro, o parlamento polonês, mais precisamente sua câmara baixa chamada de sejm, aprovou uma lei sobre o Instituto de Memória Nacional, estabelecendo uma pena de 3 anos de prisão pelo uso do termo "campos de extermínio poloneses" e declarações com referência ao colaboracionismo de cidadãos do país na época da ocupação nazista. Já ontem (7), o documento foi assinado pelo presidente da Polônia, Andrzej Duda.

A medida não tardou a gerar grande polêmica no campo internacional, tanto mais que foi aprovada logo depois da data simbólica para toda a comunidade judaica. Israel, por sua vez, logo apresentou um protesto resoluto contra a retórica do governo de Varsóvia, adiando até uma visita oficial do Conselheiro Nacional para a Segurança da Polônia, Pawel Soloch, ao país.

"É um fato histórico que muitos poloneses ajudaram a eliminar judeus, os entregavam aos nazis, os torturavam ou até os matavam após o Holocausto", afirmou o ministro da Educação israelense, Naftali Bennet, um dos críticos mais firmes da lei recentemente aprovada. Entretanto, ele indicou que o termo "campos de extermínio poloneses" na verdade pode ter uma interpretação ambígua.

O problema aqui consiste em que o termo poderá supostamente refletir que as respectivas instalações – Auschwitz, Trawniki, Sobibor, Chelmno e outras – foram de fato construídas pelos poloneses, o que evidentemente não tem nada a ver com a verdade. Por isso, a palavra "polonês" nesta frase já habitual se refere apenas ao fator territorial. Entretanto, hoje em dia centenas de historiadores, analistas e ativistas estão preocupados por isto ser não apenas um "problema de tradução", mas uma verdadeira tentativa de "reeditar" a história e refutar os fatos históricos confirmados por numerosas evidências e investigações.

Encaixando na lógica

É extremamente importante observar que, desde a chegada ao poder do governo de direita na Polônia, o país já tem empreendido várias tentativas de "revisar" o passado da Segunda Guerra Mundial, muitas vezes provocando grande polêmica e causando cada vez mais preocupação dos políticos e historiadores.

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Assim, em agosto de 2017 a chancelaria polonesa fez uma declaração inédita, suscitando o pasmo do Kremlin, isto é, culpou a Rússia, notadamente a URSS, de ter incentivado a guerra juntamente com o governo de Hitler e ajudando-o a ocupar a Polônia.

Para a Rússia, pais que sofreu tenebrosas baixas materiais e pessoais nesta guerra, perdendo cerca de 30 milhões dos seus cidadãos, tais acusações são uma manifestação clara de "cinismo político" e "negligência", propícia para que uma nova "peste" nazista possa devorar a Europa.

Ademais, mais um passo pouco compreensível foi dado pelas autoridades polonesas em relação à herança histórica em torno do campo Sobibor, onde foi registrado o único caso bem-sucedido de uma revolta em todo o período da ocupação fascista.

A questão é que a rebelião foi originalmente organizada por soldados soviéticos judeus, como o próprio líder do movimento Aleksandr Pechersky. Porém, todos estes fatos não impediram que Varsóvia excluísse Moscou do projeto para a renovação do memorial em Sobibor, assim descartando, de fato, seu papel no evento.

Parece que tudo isso encaixa em algum plano especial do partido governante polonês, Lei e Justiça, para criar uma sua nova versão da história que lhe agrade e que não "manche" a identidade nacional do país.

É evidente que ninguém tenta culpar Varsóvia por crimes que não cometeu, mas também é verdade que não se pode fechar os olhos a acontecimentos históricos como o massacre em Jedwabne em 1941, ou Kielce em 1946, já depois da guerra, que, segundo numerosas evidências, contaram com a participação de residentes locais. Em resumo, o essencial é que todos os países da Europa assumam responsabilidade pelo seu passado, por mais grave que ela seja.

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O chanceler russo, Sergei Lavrov, tem várias vezes reiterado a postura intransigente da Rússia em relação à "reabilitação" do nazismo, cujos vestígios, segundo ele, aparecem na Europa cada vez mais frequentemente.

Contudo, nem só a Rússia e Israel manifestaram sua profunda preocupação com a compostura recente do governo da Polônia. As mídias europeias, bem como as dos EUA, não param de debater o tema e desvendar a inclinação evidente da direita polonesa para abafar os fatos mais repugnantes da sua história.

Uma das maiores preocupações tem a ver com o fato de tal ideologia ser pouco compatível com o conceito político da União Europeia em geral.

"Quando se tenta mobilizar a sociedade através de uma propaganda fictícia desta espécie, ela se torna cada vez mais xenófoba. Isto pode resultar em que a juventude mais progressista e aberta ao mundo considere sua Pátria como um lugar impróprio para seu futuro", assegura a edição britânica The Financial Times.

Já o jornal italiano La Stampa assinala que a Polônia foi tanto vítima quanto associada do regime nazista, um fato que não pode ser descartado a nível oficial.

"A capacidade de aceitar e debater seu passado sem evitar as questões dolorosas é uma caraterística importante de uma sociedade e um Estado democráticos", adianta a edição.

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Já para a mídia espanhola La Vanguardia, a recente lei aprovada por Varsóvia pode resultar em uma interpretação alternativa do passado e "refutação" de fatos históricos. De acordo com o jornal, o governo polonês, deste modo, mantém a "ideia perigosa" de que o Holocausto teria sido apenas um crime alemão, enquanto ele envolvia a cooperação por parte tanto de cidadãos comuns europeus, como de governos, como, por exemplo, na França.

Vale assinalar que a comunidade de historiadores nunca descartou as manifestações de coragem, patriotismo e resistência dos países ocupados pelos nazistas, como foi o caso da organização voluntária polonesa Zegota, criada para fornecer ajuda aos judeus, no caso particular da Polônia.

Porém, as tentativas de banir qualquer discussão em torno do assunto parece ser um fator alarmante para toda a restante União Europeia, que na maioria já há muito fez questão de encarar a verdade histórica relacionada com os erros dos seus antepassados.

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