Portugal em 10 palavras

© AFP 2023 / PATRICIA DE MELO MOREIRAHomem coberto com fita adesiva segura uma bandeira portuguesa e um cartaz dizendo “Quem lucra com os incêndios?”, enquanto centenas de pessoas se juntam na Praça do Comércio, Lisboa, em 21 de outubro de 2017, para protestar contra a resposta do governo aos recentes fogos florestais em Portugal
Homem coberto com fita adesiva segura uma bandeira portuguesa e um cartaz dizendo “Quem lucra com os incêndios?”, enquanto centenas de pessoas se juntam na Praça do Comércio, Lisboa, em 21 de outubro de 2017, para protestar contra a resposta do governo aos recentes fogos florestais em Portugal - Sputnik Brasil
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À primeira vista, a ideia de escolher a "palavra do ano" não parece muito original. Afinal, o que mostra, o que reflete uma palavra ou mesmo dez palavras? Muito pouco. No entanto, o resultado não parece assim tão superficial como julgaríamos.

A Porto Editora publica anualmente desde 2009 a palavra escolhida pelos portugueses de um conjunto de 10 palavras finalistas. Estas 10 são produto do trabalho de acompanhamento da realidade da língua portuguesa, feito com base na análise de frequência e distribuição de uso das palavras e do relevo que elas alcançam, tanto nos meios de comunicação e redes sociais como no registro de consultas online dos dicionários da editora, tendo em consideração também as votações dos portugueses através do site do concurso.

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O concurso "tem como principal objetivo sublinhar a riqueza lexical e o dinamismo criativo da língua portuguesa, patrimônio vivo e precioso de todos os que nela se expressam, acentuando, assim, a importância das palavras e dos seus significados na produção individual e social dos sentidos com que vamos interpretando e construindo a própria vida", conforme refere o site do concurso.

As dez palavras finalistas deste ano são: "afeto", "cativação", "crescimento", "desertificação", "floresta", "gentrificação", "incêndios", "independentistas", "peregrino" e "vencedor".

Muitos referem que conjunto de palavras escolhidas em um país em determinado ano forma uma espécie de "fotografia dos interesses e preocupações das pessoas" nesse lugar e nesse tempo. Analisadas ao longo dos vários anos, são como que um retrato do que as pessoas pensam em determinado período histórico.

A Sputnik Brasil pediu à professora catedrática Inês Duarte, do Departamento de Linguística Geral e Românica da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, que comentasse a escolha destas dez palavras e o seu significado:

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"Isto dá-nos uma ideia sobre aquilo que são as principais preocupações das pessoas no ano. Desse ponto de vista, acho interessante quando nós olhamos para aqui vemos uma série de interesses, alguns são mais perenes, digamos assim, outros são claramente interesses conjunturais. Estou a pensar aqui em 'independentista' (esta tem a ver, creio, com o problema da Catalunha), nos 'incêndios', na 'desertificação' e na 'floresta', que tem a ver com tudo aquilo que se passou no verão, mas também com o que é uma preocupação mais longa, o que se está a passar no nosso interior já desde os anos 60. Em primeiro lugar, por causa da miséria que havia durante o Estado Novo nos anos 60, são os anos de fome e de emigração, quase desde as eleições de Humberto Delgado. Há uma emigração em massa e o que se passa é que essa tendência não se conseguiu reverter. Houve tentativas, e uma dessas tentativas foi a de criar polos de atração através da distribuição de instituições de ensino superior politécnico no interior do país. E isso ajudou a criar ali, em algumas cidades, polos de atração: alunos que entram, os professores que deslocam para lá, mas também os serviços que são necessários, tudo aquilo que se cria à volta do ensino superior, o que dinamiza um pouco. Houve essa iniciativa, mas, na realidade, nós sabemos que temos um déficit muito grande aí, penso que esta oposição entre litoral e interior vem de há muito mais para trás do que o século XX, é muito difícil reverter a tendência. E o que se passa em relação à 'floresta' tem sido também uma coisa muito discutida, é claro que a partir do momento em que nós deixamos de ter atividade econômica ligada à agricultura e à criação de gado, deixamos de ter as pessoas e passamos a ter uma floresta que é de 50 mil proprietários que ninguém percebe muito bem quem são. Os cadastros de propriedade não estão feitos, só agora se estão a tentar fazer, depois as coisas são muito complicadas porque, contrariamente ao que se passa noutros países da Europa, temos uma percentagem de floresta entregue aos proprietários privados muito elevada. Por isso, é muito mais difícil garantir que as terras são cuidadas, que há limpeza dos matos, etc.

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Eu acho que aqui estamos numa linha que é: este ano, com a intensidade dos incêndios, é natural que este campo semântico tenha sido privilegiado.

Depois temos aqui a questão do 'crescimento' e da 'cativação', que mostram bem que nós continuamos muito atentos à nossa situação econômica. A 'cativação', como sabe, tem a ver com a estratégia que o governo tem usado para controlar a despesa pública. Isso tem sido muito atacado pela oposição.

'Gentrificação' tem a ver com que se está a passar em Lisboa e no Porto por causa do turismo. A 'gentrificação' é uma palavra que vem do 'gentry', um termo que nasce no mundo anglo-saxônico exatamente quando, por políticas ligadas com a revitalização de zonas dos centros das cidades que estavam degradadas, começa a haver a expulsão dos inquilinos mais débeis que eram os que viviam nessas zonas, no centro da cidade. Isso aconteceu em grande parte no mundo anglo-saxônico, sobretudo nos Estados Unidos e também em Inglaterra. Aí, os subúrbios são as zonas finas e os centros das cidades eram as zonas pobres, ao contrário do que se passa em muitas cidades europeias. Paris, por exemplo, deslocou todos os imigrantes para fora do centro, em Lisboa em muitos bairros também acontece isso. Em Londres, só a partir de determinada altura é que alguns bairros do centro viraram chiques, por exemplo, a zona oriental de Londres era uma zona degradada, de criminalidade.

Este processo está muito claro agora em Lisboa. Por um lado, do ponto de vista das cidades, tem efeitos positivos, leva à recuperação de zonas importantes, até historicamente, por outro lado, se isto não for acompanhado de políticas ativas de habitação que tenham em conta as populações mais frágeis, mais pobres, pode levar a coisas terríveis, a aumentarmos de uma forma completamente desumana o número de pessoas que são arrastadas para fora das cidades, das zonas que elas conheciam, onde tinham apoios de vários tipos. Como sabe, nos países do sul os vizinhos são muito importantes. Isso também provoca o aumento dos sem-abrigo [sem-teto].

Quanto à palavra 'afeto', ela tem a ver com uma etiqueta que é colada ao presidente da República [portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa], o 'presidente dos afetos'. De fato, ele é uma pessoa que tem uma capacidade de empatizar com os outros, é um excelente comunicador e os afetos penso que têm a ver com isso, com essa forma de exercer a mais alta magistratura da República, de uma forma completamente diferente, sobretudo depois daquela criatura que presidiu antes. Ele tem essa capacidade de comunicar, de se entrosar com todo o tipo de pessoas, de classes sociais diferentes, e de várias maneiras.

'Peregrino' tem a ver com vinda do Papa a Fátima [cidade portuguesa famosa pelo alegado aparecimento da Virgem Maria diante de três pastorzinhos]. Sim, foi um momento alto para um país… eu não sei se é predominantemente católico ao nível das convicções profundas e da prática, mas é um país (pelo menos uma parte dele) que dá muita importância às festas religiosas, às romarias. Digamos que, do Mondego para cima, quando lá passeamos entre maio e outubro não há terrinha onde não haja uma festa, uma procissão… E Fátima, de fato, tem um lugar muito importante no imaginário católico português.

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'Vencedor' deve ser o vencedor da Eurovisão [vencido por Portugal neste ano]. Foi muito inesperado, a música é muito bonita, não há dúvida, mas eu penso que aqui houve uma conjugação de fatores muito interessante: a qualidade da música e depois também a personalidade do Salvador Sobral, o fato de ele ser muito frágil, a sua ligação muito grande com a irmã compositora. Mas sim, a canção mereceu vencer."

Que palavra vencerá?

A professora Inês Duarte se absteve de alguma maneira de dar uma resposta clara a esta pergunta, alegando que "nunca acerta em nada que tenha a ver com lotarias". Porém, indicou que pode ser qualquer palavra à volta dos incêndios, da floresta, da desertificação. Quanto à redação da Sputnik Brasil, acreditamos que será a palavra "incêndios", se os portugueses se concentrarem em problemas internos do país, ou "independentista", se o foco for colocado na realidade internacional. Em todo caso, vamos saber a palavra vencedora em 4 de janeiro de 2018. A votação está em curso até 31 de dezembro em www.palavradoano.pt.

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