Frustração de Washington: quem assumirá papel de intermediário no conflito curdo?

© AFP 2023 / AHMAD AL-RUBAYEBandeira do Curdistão e combatente curdo Peshmerga monitorando a área a partir do seu posto na linha de frente em Bashiqa
Bandeira do Curdistão e combatente curdo Peshmerga monitorando a área a partir do seu posto na linha de frente em Bashiqa - Sputnik Brasil
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Recentemente, se abriu de novo uma das numerosas "feridas" étnicas que durante décadas têm ameaçado a estabilidade e paz no Oriente Médio, isto é, a questão curda. A Sputnik explica o que Moscou tem a ver com esse conflito e prognostica se o Curdistão iraquiano tem hipótese de virar "uma outra Síria" em um futuro breve.

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Apesar de ter sido sempre um assunto pendente na agenda internacional, o problema curdo passou para segundo plano após a guerra contra o Daesh, organização terrorista proibida na Rússia e em vários outros países, ter virado a tarefa principal para os governos locais. Entretanto, o recente referendo sobre a independência curda no Iraque e a reconquista da cidade petroleira de Kirkuk pelas forças iraquianas fizeram vir à tona as discrepâncias congeladas e levaram o conflito a um novo patamar.

Povo dividido

Os curdos representam uma das aglomerações étnicas mais numerosas no mundo que se divide entre diferentes territórios nacionais, ao mesmo tempo não tendo o direito a seu próprio Estado independente oficialmente reconhecido.

No início do século passado, após a dolorosa Primeira Guerra Mundial, houve tentativas de "presentear" os curdos com a soberania — por exemplo, no âmbito do Tratado de Sèvres, isto é, o acordo de paz celebrado entre os Aliados e o Império Otomano. No entanto, o documento nunca chegou a vigorar, dando lugar a um tratado mais amplo — Tratado de Lausanne — que, desta vez, já não tratava a questão curda por esta ser polêmica demais.

Hoje em dia, os curdos se alastram por vários países muçulmanos — a Turquia, o Irã, a Síria e o Iraque. Sendo todos eles apoiantes entusiásticos da sua independência, foi precisamente o Iraque, ou seja, o Curdistão iraquiano, que virou o maior palco de briga entre os ativistas curdos e as autoridades nacionais. Um dos motivos para isso é a riqueza da região em recursos — de acordo com vários relatórios, o Curdistão iraquiano é o 6º território com maiores estoques de petróleo estimados em cerca de 45 bilhões de barris.

Após o território habitado pelos curdos ter sido dividido entre a Turquia, o Iraque e a Síria após a 1ª Guerra Mundial, sobrou tempo para que os curdos iraquianos obtivessem a "independência". Sobrou sofrimento também. A coisa é que nas décadas de 70 e 80 o então líder iraquiano, Saddam Hussein, travou uma política de "arabização", usando mesmo armas químicas na luta contra os rebeldes.

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Em 1991, o Conselho de Segurança da ONU qualificou as regiões curdas no Iraque como "zonas de segurança".

A partir daí os curdos têm considerado este território (e vários outros, inclusive Kirkuk já mencionado) como seu, mas nunca conseguiram juntar bastantes recursos humanos e financeiros para obter a independência de jure. Em outras palavras, o conflito continuou em fase congelada. Até o momento em que os jihadistas chegaram à região, ocupando os territórios iraquianos, inclusive os que os curdos consideravam como seu patrimônio histórico.

'Nova Síria' após a Síria?

Por mais estranho que pareça, a chegada do Daesh à região foi algo que conteve a confrontação aberta entre as autoridades iraquianas e Erbil, a autoproclamada "capital" do Estado curdo no Iraque. A coisa é que no verão de 2014 as forças terroristas conseguiram ocupar o território de Kirkuk, oficialmente parte do Iraque, mas sempre considerado pelos curdos como território seu, e na subsequente reconquista as forças peshmerga, as unidades militares curdas, se mostraram mais eficientes.

A espécie de trégua para recuperar suas terras contribuiu para a derrota do Daesh nas respectivas províncias, porém, foi também aproveitada pelos curdos para tomar controle do maior número possível de territórios e, nessa onda de sucesso, convocar um referendo em 25 de setembro de 2017.

Não é de estranhar que a maioria esmagadora (90%) da população curda tenha votado a favor de "dizer adeus" a Bagdá. Não é de estranhar também que este passo tenha suscitado indignação não só por parte do governo iraquiano, mas também por todos os países relacionados com a questão curda.

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Teerã, a pedido do Iraque, suspendeu a ligação aérea com o Curdistão iraquiano, a Turquia ameaçou a formação autoproclamada com sanções econômicas, inclusive o encerramento dos gasodutos; os países, além disso, se apressaram a iniciar manobras militares perto das fronteiras curdas. Damasco, por sua vez, também se manifestou contra, mas, pelo visto, esta já tem problemas de sobra.

Desde o início, Bagdá insiste que não descarta um cenário militar da resolução do conflito, enquanto os curdos sublinham sua disponibilidade para um diálogo pacífico, mas assinalam também a resiliência para se defender caso seja necessário.

Já na segunda-feira (16), Bagdá enviou o primeiro sinal forte a Erbil tomando a cidade de Kirkuk, qualificada pelos curdos como sua após "ter sido coberta com sangue" do seu povo e reconquistada ao Daesh. Para as autoridades curdas, isto significou uma "proclamação de guerra".

Fator de estabilidade para toda a região

À primeira vista, a questão árabe pode não parecer tão séria — tanto mais que no Oriente Médio há tantos conflitos de caráter religioso, étnico e nacional. Entretanto, indicam vários especialistas, após a vitória sobre o Daesh, este pode ser o fator fatídico para o fracasso da paz na região. Entretanto, já nos últimos dias, houve relatos de que os jihadistas teriam conseguido aproveitar a tensão local para avançar em algumas províncias que antes abandonaram.

O motivo principal para isso é que a questão curda não se limita às fronteiras de um só país, como acontece na maior parte dos conflitos étnicos. Neste caso, a possível proclamação de independência significaria uma dor de cabeça não apenas para Bagdá, mas também para Damasco, Teerã e Ancara.

Ao final, fica claro que Bagdá, de fato, se mostra indisponível para o diálogo, ou não é capaz de o efetuar nas condições de hoje. Nesse contexto, surge a questão da necessidade de um possível mediador.

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Washington, que costuma se considerar como o gendarme global, inclusive no Oriente Médio, se mostra frustrado: o problema é que ele tem apoiado tanto as peshmerga, como as tropas governamentais do Iraque, no decorrer das operações militares contra o Daesh. Por isso, para muitos, a postura da Casa Branca continua sendo ambígua.

Aí, surge a pergunta: será que Moscou, a potência que ganha cada vez mais peso na região, pode entrar no palco como possível pacificadora, como já aconteceu no caso das negociações de Genebra no conflito sírio? Por um lado, a Rússia continua sendo a maior investidora no Curdistão curdo e sempre se manifestou a favor da autodeterminação dos povos, mas, por outro, ela mantém boas relações com o Iraque e provavelmente não tem o mínimo desejo de miná-las.

Enquanto isso, talvez a opção em que um mediador desfruta de ótimo relacionamento com ambos os lados seja a ideal para a busca de um eventual consenso?

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