Milhares de mortes por cólera no Haiti: Uma (ir)responsabilidade da ONU? (EXCLUSIVO)

© Sputnik / Igor PatrickO vendedor Ilphim Jean Gilles (51 anos) mostra a foto da filha Woodeline, morta em 2013 aos 24 anos vítima de cólera: "Ela era minha primogênita, tudo pra mim. Os soldados da ONU levaram embora minha esperança".
O vendedor Ilphim Jean Gilles (51 anos) mostra a foto da filha Woodeline, morta em 2013 aos 24 anos vítima de cólera: Ela era minha primogênita, tudo pra mim. Os soldados da ONU levaram embora minha esperança. - Sputnik Brasil
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Continuando a série de reportagens especiais no Haiti, a Sputnik Brasil foi investigar um dos temas mais controversos da Minustah: a responsabilidade pela disseminação do surto de cólera que se abateu sobre o país e matou quase 10 mil pessoas.

O pedreiro Charlithe Eddy, 26 anos, conta uma história com traços dramáticos. Em dezembro de 2011, a mãe de Charlithe começou a vomitar e ter diarreia repentinamente. Em questão de horas, piorou a um estado tão crítico que a senhora sequer era capaz de falar.

"Coloquei ela nas costas e saí de madrugada desesperado, procurando um hospital aberto que pudesse ajudar. Mas ela morreu sobre mim", ele relembra, com a voz embargada.

Como morava no sul do país durante a passagem do furacão Matthew em outubro do ano passado, Charlithe viu todas as fotos da mãe se perderem na força do vento. Ficou sem casa e só com as memórias para se lembrar dela. "Estou feliz que [os soldados da Minustah estejam indo embora], não os quero aqui", confessa.

Quando a notícia de que a Sputnik Brasil estava em uma escola na favela de Cité Soleil entrevistando vítimas da cólera se espalhou, uma multidão rapidamente se aglomerou no local. Todos queriam contar o quanto sofreram, dos familiares que morreram para a bactéria mortal, da devassa na comunidade. São as vítimas da irresponsabilidade da ONU.

© Sputnik / Igor PatrickO pedreiro Charlithe Eddy (26 anos) perdeu a mãe em dezembro de 2011 carregou a mãe com cólera nas costas no meio da noite, desesperado por tratamento médico: "Não quero esses soldados [da Minustah] aqui, estou feliz que estejam indo embora".
O pedreiro Charlithe Eddy (26 anos) perdeu a mãe em dezembro de 2011 carregou a mãe com cólera nas costas no meio da noite, desesperado por tratamento médico: Não quero esses soldados [da Minustah] aqui, estou feliz que estejam indo embora. - Sputnik Brasil
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O pedreiro Charlithe Eddy (26 anos) perdeu a mãe em dezembro de 2011 carregou a mãe com cólera nas costas no meio da noite, desesperado por tratamento médico: "Não quero esses soldados [da Minustah] aqui, estou feliz que estejam indo embora".
© Sputnik / Igor PatrickO pedreiro Dexilus St. Louis (53 anos) teve cólera em novembro do ano passado: "Meus joelhos não aguentavam o peso do meu corpo, sentia dores no estômago. Duas pessoas morreram do meu lado no hospital, eu estava com medo".
O pedreiro Dexilus St. Louis (53 anos) teve cólera em novembro do ano passado: Meus joelhos não aguentavam o peso do meu corpo, sentia dores no estômago. Duas pessoas morreram do meu lado no hospital, eu estava com medo. - Sputnik Brasil
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O pedreiro Dexilus St. Louis (53 anos) teve cólera em novembro do ano passado: "Meus joelhos não aguentavam o peso do meu corpo, sentia dores no estômago. Duas pessoas morreram do meu lado no hospital, eu estava com medo".
© Sputnik / Igor PatrickProfessor de matemática Samuel Jean-Marie (24 anos), infectado com a cólera em 2011: "Muitas pessoas não acreditam nas doenças, acham que tem a ver com magia negra e procuram um curandeiro".
Professor de matemática Samuel Jean-Marie (24 anos), infectado com a cólera em 2011: Muitas pessoas não acreditam nas doenças, acham que tem a ver com magia negra e procuram um curandeiro. - Sputnik Brasil
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Professor de matemática Samuel Jean-Marie (24 anos), infectado com a cólera em 2011: "Muitas pessoas não acreditam nas doenças, acham que tem a ver com magia negra e procuram um curandeiro".
© Sputnik / Igor PatrickA cozinheira Anèse Beaubrun (51 anos) teve cólera em novembro de 2011: "Fui levada para vários hospitais porque estava tudo lotado e eles fechavam cedo para conseguir atender todo mundo. A cólera me deixou tão fraca que nem percebi. A ONU deveria nos estender a mão e ganhamos um chute".
A cozinheira Anèse Beaubrun (51 anos) teve cólera em novembro de 2011: Fui levada para vários hospitais porque estava tudo lotado e eles fechavam cedo para conseguir atender todo mundo. A cólera me deixou tão fraca que nem percebi. A ONU deveria nos estender a mão e ganhamos um chute. - Sputnik Brasil
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A cozinheira Anèse Beaubrun (51 anos) teve cólera em novembro de 2011: "Fui levada para vários hospitais porque estava tudo lotado e eles fechavam cedo para conseguir atender todo mundo. A cólera me deixou tão fraca que nem percebi. A ONU deveria nos estender a mão e ganhamos um chute".
© Sputnik / Igor PatrickO vendedor Ilphim Jean Gilles (51 anos) mostra a foto da filha Woodeline, morta em 2013 aos 24 anos vítima de cólera: "Ela era minha primogênita, tudo pra mim. Os soldados da ONU levaram embora minha esperança".
O vendedor Ilphim Jean Gilles (51 anos) mostra a foto da filha Woodeline, morta em 2013 aos 24 anos vítima de cólera: Ela era minha primogênita, tudo pra mim. Os soldados da ONU levaram embora minha esperança. - Sputnik Brasil
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O vendedor Ilphim Jean Gilles (51 anos) mostra a foto da filha Woodeline, morta em 2013 aos 24 anos vítima de cólera: "Ela era minha primogênita, tudo pra mim. Os soldados da ONU levaram embora minha esperança".
© Sputnik / Igor PatrickFranckline Possible (20 anos) ficou doente da cólera enquanto ainda estava grávida do filho, Marcovens Jeffrey Possible (hoje com 3 anos): "Achei que fosse perder o bebê".
Franckline Possible (20 anos) ficou doente da cólera enquanto ainda estava grávida do filho, Marcovens Jeffrey Possible (hoje com 3 anos): Achei que fosse perder o bebê. - Sputnik Brasil
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Franckline Possible (20 anos) ficou doente da cólera enquanto ainda estava grávida do filho, Marcovens Jeffrey Possible (hoje com 3 anos): "Achei que fosse perder o bebê".
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O pedreiro Charlithe Eddy (26 anos) perdeu a mãe em dezembro de 2011 carregou a mãe com cólera nas costas no meio da noite, desesperado por tratamento médico: "Não quero esses soldados [da Minustah] aqui, estou feliz que estejam indo embora".
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A ONU e a cólera

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Para entender como essas histórias se conectam com a presença das tropas de paz das Nações Unidas no Haiti, é preciso revisitar a forma como os soldados levaram a mortal Vibrio cholerae para o país insular e é necessário voltar a outubro de 2010, mais especificamente ao Vale de Artibonite, região central do Haiti.

Era lá, em meio a vastas planícies ocupadas por plantações de arroz que se localizava a base do Nepal. Contrariando quaisquer regulações internacionais, a ONU não só não se atentou à falta de exames médicos dos militares nepaleses — cujo país passava por um surto de cólera — como protagonizou um show de absurdos que levaria à morte de 9617 haitianos e a outros 812 mil infectados até maio deste ano.

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Quando os primeiros doentes começam a aparecer e as mortes a se multiplicarem, uma investigação independente descobre que a bactéria em Artibonite tinha as mesmas características infecciosas daquela presente no Nepal. Posteriormente é constatado que, sem condições sanitárias instaladas, as tropas nepalesas descartavam fezes e urina no rio Artibonite, usado para irrigar plantações e saciar a sede da população.

Servindo no país como chefe do Escritório da Organização dos Estados Americanos (OEA) no Haiti no período do início do surto, Ricardo Seitenfus pensava que o maior problema com o qual lidaria naquele ano seriam os efeitos do terremoto de janeiro, responsável pela morte de mais de 300 mil pessoas no início do ano. Estava enganado. A doença se espalhava por todo o país.

Como 75% dos infectados não apresentam sintomas até a piora definitiva que leva à morte em poucas horas, Ricardo descreve um cenário de pessoas perdendo até 11% do seu volume corporal enquanto a ONU se comporta de forma "pior que vergonhosa, [mas sim] uma mancha na história das Nações Unidas com seus membros mais frágeis como é o caso do Haiti" nas palavras do próprio.

"As Nações Unidas emitem comunicados oficiais dizendo que a cólera [no Haiti] nasceu do choque de placas tectônicas em razão do terremoto quando se sabe muito bem que ela nasceu no Vale do Artibonite. Outra versão inclusive propagada pela Organização Mundial da Saúde que seria o aquecimento global e dos oceanos que havia feito surgir no litoral haitiano plânctons [que causariam a doença] […]. Ao não reconhecer a responsabilidade imediata das tropas nepalesas, não foi identificado qual era o gene bacilo de cólera, […] uma questão urgente para saber quais seriam os instrumentos para combater este mal invisível. Se perderam semanas e meses que provocaram milhares de mortes dos que não conseguiram buscar socorro médico nesse período", analisa Seitenfus.

O professor avalia ainda que, por conta da incapacidade das vítimas procurarem ajuda médica, os números de mortos podem ser subestimados. "Há estudos epidemiológicos franceses que falam entre 40 e 50 mil mortos", denuncia. Ricardo foi afastado do posto em 2011, depois de conceder uma entrevista ao jornal suíço Le Temps na qual questionava a necessidade da Minustah e as sucessivas falhas da comunidade internacional com a nação caribenha.

O panorama atual

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Anèse Beaubrun, 51 anos, escapou da morte, mas para isso enfrentou uma via crucis quando se infectou. No auge da doença, com dezenas de casos fatais todos os dias, ela sentiu o corpo queimar por dentro. Em questão de duas horas não conseguia mais falar e foi levada pela família em vários hospitais porque a maioria estava lotado com casos tão ruins ou piores que o dela. "Eu desmaiei, meu filho me encontrou já no chão. Estava suja de vômito", ela se lembra.

Semanas depois do terremoto de 2010, a comunidade internacional já aventava a possibilidade uma epidemia de cólera ser arrasadora no Haiti. A despeito da completa destruição, a bactéria surgiria a vários quilômetros dali, o que não facilitou em nada o tratamento da doença.

O costume haitiano manda comer os alimentos com as mãos ao invés de talheres. A despeito dos US$50 milhões providos pelo Banco Mundial em outubro de 2014, o saneamento básico praticamente inexiste para a maioria da população, que bebe e despeja dejetos na mesma água. Formando o tripé da tragédia anunciada, a grande maioria do sistema de saúde local é privada, cobrando valores que, para uma população cuja renda per capita raramente ultrapassa US$2 por dia, é exorbitante.

Haitianos protestam para exigir à MINUSTAH (Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti) que pague pelo surto de cólera no Haiti em 2010 durante uma manifestação em Port-au-Prince, Haiti. Foto tirada em 15 de fevereiro de 2017. - Sputnik Brasil
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Procurando suprir o vácuo deixado pelo estado, a organização Médicos sem Fronteiras abriu uma instalação temporária em um hospital ortopédico da ONG que seria fechado. O número de doentes chamou a atenção até dos médicos mais experientes.

"Tivemos que lutar uma guerra para evitar o aumento de casos, distribuindo cloro para que as pessoas tratassem a água, driblando o problema crônico da logística para a distribuição de vacinas, na articulação com outras organizações para que a população começasse a entender a gravidade da doença, trazendo médicos de outras missões da MSF que lidavam com a cólera", relembra à Sputnik Brasil o coordenador-adjunto do Setor Médico da MSF no Haiti, Dr. Carl Frédéric Casimir.

© Sputnik / Igor PatrickO coordenador-adjunto do Setor Médico da MSF no Haiti, Dr. Carl Frédéric Casimir: "Nos surpreendemos com a quantidade de casos de cólera no início do surto".
O coordenador-adjunto do Setor Médico da MSF no Haiti, Dr. Carl Frédéric Casimir: Nos surpreendemos com a quantidade de casos de cólera no início do surto. - Sputnik Brasil
O coordenador-adjunto do Setor Médico da MSF no Haiti, Dr. Carl Frédéric Casimir: "Nos surpreendemos com a quantidade de casos de cólera no início do surto".

Casimir acredita que, dada à parca infraestrutura do Haiti, a cólera ainda permanecerá uma urgência de saúde pública durante muitos anos no país. "As condições de higiene ainda são ruins e as pessoas tendem a minimizar a situação. Falta acesso à água limpa, uma rede de comunicação de todos os setores governamentais para fazer funcionar o esforço no combate à doença", analisa.

O líder comunitário e professor em Cité Soleil, Smith Petioth também aponta mais um problema, este de resolução ainda mais complicada. Ele, que trabalhou como agente focal da Organização Internacional de Migração (OIM) durante o surto de cólera e mobilizou a comunidade em torno do tema notou como a pobreza potencializa os riscos:

"As pessoas com cólera sentem muita dor de estômago no início da doença. O que percebi foi que quem passava o dia todo sem comer pensava que as dores eram resultado da fome e não procuravam ajuda até ser tarde demais".

7 anos depois, pouco foi feito

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No apagar das luzes do mandato, o ex-secretário-geral da ONU Ban Ki-moon finalmente reconheceu no final de 2016, pediu desculpas pela forma como a ONU lidou com a cólera no Haiti. Passados seis anos desde o início do surto, o sul-coreano afirmou em comunicado um "profundo arrependimento" e que "deu-se conta de que precisa fazer muito mais a respeito de seu envolvimento desde o início da epidemia e do sofrimento das pessoas afetadas pela cólera”. Ainda assim, recusou-se a apontar culpados e falou apenas na "responsabilidade moral das Nações Unidas".

Moon ainda declarou que a ONU estava perto de alcançar US$200 mi para a construção de saneamento e tratamento de água no país e que outros US$200 mi seriam arrecadados para prover "assistência material" às famílias e comunidades que sofreram. 

"Eliminar a cólera do Haiti e cumprir nossa responsabilidade moral com aqueles que foram mais diretamente afetados, exigirá o pleno empenho da comunidade internacional e, fundamentalmente, os recursos necessários", afirmou.

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Em junho, o novo secretário-geral, António Guterres afirmou que o dinheiro "não foi concebido para indivíduos, mas para comunidades". Segundo o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA), "o Plano Nacional para a Erradicação da Cólera continua a ser subfinanciado, em especial o sistema de alerta-resposta e o componente de assistência médica em aspectos relacionados à melhoria física das estruturas. As equipes de resposta, portanto, serão eliminadas até o final de 2017 na ausência de novos financiamentos". O dinheiro ainda não foi entregue.

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