Portugueses no Iraque estão seguindo a lógica da invasão americana de 2003?

© AFP 2023 / AHMAD AL-RUBAYEMilitares portugueses e espanhóis na base militar iraquiana de Besmayah, cerca de 50 quilómetros a sudoeste de Bagdá, em 27 de janeiro de 2017
Militares portugueses e espanhóis na base militar iraquiana de Besmayah, cerca de 50 quilómetros a sudoeste de Bagdá, em 27 de janeiro de 2017 - Sputnik Brasil
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As declarações do ministro da Defesa português são feitas 14 anos depois da cúpula nos Açores que lançou a guerra na região e abriu espaço ao terrorismo.

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Na segunda-feira passada, dia 26 de junho, o ministro da Defesa português, Azeredo Lopes, esteve na base militar Grã Capitan, no campo de treino Besmayah, cerca de 50 quilômetros a sudoeste de Bagdá, onde 30 efetivos da brigada de intervenção do exército português treinam elementos das forças armadas iraquianas. Ao longo dos anos, já cerca de 150 militares portugueses passaram por esta base no Iraque para executarem missões idênticas.

O ministro da Defesa disse nesta segunda-feira (26), à agência de notícias portuguesa Lusa, que Portugal está disponível para integrar uma força da OTAN na coalizão internacional que combate o grupo Daesh (proibido na Rússia e em vários outros países) no Iraque na vertente da formação e treino.

"Portugal já mostrou disponibilidade para assumir que, caso fosse necessário, poderia reconfigurar o seu empenhamento de forma crescente. Essa disponibilidade mantém-se. Isto pressupõe a definição clara por parte de todos os elementos da organização. Quando essa definição for mais clara, estarei em condições de dizer o que convirá ao Estado português", afirmou Azeredo Lopes.

Há mais de 14 anos se reuniu em uma das ilhas portuguesas do arquipélago dos Açores a chamada Cúpula da Guerra, que preparou a invasão do Iraque pelos EUA, com ajuda de alguns dos seus aliados tradicionais, e sem autorização do Conselho de Segurança das Nações Unidas.

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George W. Bush (Estados Unidos), Tony Blair (Reino Unido) e José Maria Aznar (Espanha), recebidos pelo premiê português da época, José Manuel Durão Barroso, se encontraram na tarde de 16 de março de 2003, em uma reunião que culminou, quatro dias depois, na madrugada de 20 do mesmo mês, com o início da invasão militar do Iraque.

Na época, o primeiro-ministro português justificou o apoio à invasão do Iraque, com a existência de armas de destruição maciça, nas mãos do exército de Saddam Hussein, que colocariam em perigo a segurança internacional. "Com certeza que vi", respondeu Durão Barroso quando foi questionado sobre se tinha, efetivamente, visto as alegadas provas, especificando que o "avistamento" tinha ocorrido em Londres.

Em 15 de fevereiro de 2003, nas chamadas jornadas mundiais contra a guerra do Iraque, mais de 18 milhões de pessoas se manifestaram nas ruas contra esta invasão anunciada. Em Lisboa, foram mais de 200 mil pessoas.

Na sociedade portuguesa, entre os opositores à intervenção dos EUA no Iraque, esteve várias vezes um acadêmico, professor da Universidade do Porto, Azeredo Lopes, o atual ministro da Defesa do governo do Partido Socialista, dirigido por António Costa.

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Perante o anúncio da passada segunda-feira, a pergunta que se coloca é que se a participação de tropas portuguesas no Iraque é positiva para a estabilização do país e para o combate às forças terroristas, como o Daesh, ou se insere na mesma lógica desestabilizadora que levou à invasão americana do Iraque.

O major-general Carlos Manuel Martins Branco, antigo subdiretor do Instituto da Defesa Nacional português, que foi, entre outras missões, porta-voz do comandante da Força Internacional de Assistência para Segurança (International Security Assistance Force, em inglês) no Afeganistão, com vasta experiência em missões internacionais na ex-Iugoslávia, e no Médio Oriente, em depoimento à Sputnik Brasil, valoriza positivamente a atual participação de militares portugueses em missão no Iraque.

"É muito importante a participação das Forças Armadas portuguesas no Iraque. Essa importância não tem propriamente a ver com o número, mas com a participação em si. Cada país está presente em função das suas capacidades. A decisão das autoridades nacionais é reveladora de solidariedade para com as organizações internacionais em [de] que o país participa e dá liberdade de manobra aos dirigentes nacionais nesses fóruns. Não estar presente não seria nunca uma opção", considera.

Apesar desta defesa, o major-general é muito crítico do papel que as intervenções militares ocidentais tiveram na região:

"A evidência tem demonstrado que estas intervenções têm sido bastante contraproducentes. Os resultados estão à vista de todos. Nenhum dos objetivos propalados foi atingido. Esses países não ficaram democracias, as sociedades tornaram-se caóticas, e os grupos islâmicos radicais contidos pela ordem política anterior proliferam agora. O nível de sofrimento humano é agora incomensuravelmente superior. O caso líbio é paradigmático."

Para este oficial português, a proliferação de grupos terroristas na região e a situação de guerra e caos, foram em grande parte criadas pelas intervenções dos EUA.

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"As intervenções ocidentais lideradas pelos EUA que refere, como na Líbia, em que os EUA lideraram a partir dos bastidores, tiveram vários efeitos nefastos. Todas elas padeceram do mesmo erro: o que fazer no dia seguinte? Em nenhum dos casos houve um plano para lidar com a nova situação criada pela alteração da correlação de forças. A desmobilização completa do exército iraquiano terá sido, porventura, o erro mais clamoroso. A ostracização da maioria dos seus dirigentes fez com que fossem uns anos mais tarde engrossar as fileiras do Estado Islâmico, criando uma debilidade tremenda nas forças armadas iraquianas. A forma como foi gerida a nova correlação de forças políticas foi igualmente desastrosa. Os resultados dessas intervenções deixaram claro que o projeto de provocar mudanças de regime e criar democracias liberais no Médio Oriente não passava de uma lucubração fantasiosa, não admissível a dirigentes de grandes potências. Para além do mais, era política americana da altura [época] não se envolver em statebuilding [construção de Estado], algo incompreensível e incompatível com o objetivo declarado de mudanças de regime".

Uma posição ainda mais crítica manifestou, em declarações à Sputnik, o tenente-coronel Vasco Lourenço, um dos principais militares que participou da revolução de 25 de Abril de 1974.

"Tenho muitas dúvidas sobre o atual envolvimento de militares portugueses. É uma questão de política externa e não acho que seja benéfico para Portugal. Estão a defender o quê? Nós somos um país que procura a paz, não me parece que o nosso envolvimento nesses cenários de guerra conduza a isso", afirmou.

Sobre o papel de Portugal, no início da invasão do Iraque, ao acolher a chamada Cúpula da Guerra nos Açores, o militar de Abril é bastante violento: "Eu chamo Durão Barroso [do] mordomo das Lajes, esteve lá como criado dos EUA. Na minha opinião os chefes de Estado que lançaram esta guerra, que já custou milhões de mortos, deviam estar presos".

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