Como chegar a Marte e não morrer? Eminente cientista brasileira explica

© REUTERS / NASA/JPL-CaltechThis computer-generated view depicts part of Mars at the boundary between darkness and daylight, with an area including Gale Crater beginning to catch morning light, in this handout image provided by NASA
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Nesta segunda-feira (26), a Universidade Russa da Amizade dos Povos contou com uma visita da Dra. Thais Russomano, diretora da empresa InnovaSpace e fundadora do primeiro centro de pesquisa em medicina espacial no Brasil, o MicroG. A Sputnik Brasil falou com a cientista e discutiu os assuntos mais urgentes no desbravamento do Planeta Vermelho.

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A viagem humana a Marte e sua provável colonização tem gerado bastante repercussão ao longo dos últimos anos, com numerosos projetos aparecendo, filmes espaciais sendo lançados no ar, com até projetos tais como MARS ONE, que planeja reunir centenas de pessoas de várias profissões, históricos e origens para viajarem ao Planeta Vermelho.

Entretanto, além das fantasias e sonhos, a colonização de Marte continua uma tarefa bem sofisticada, relacionada com dezenas de nuances e obstáculos, predominantemente na área da medicina. A Dra. Russomano, especializada exatamente nas questões de tratamento médico de astronautas, falou com a Sputnik Brasil e respondeu às perguntas mais curiosas sobre o curso das coisas.

Que desafios ainda impedem essa aventura?

Em uma conversa com a Sputnik, a cientista revelou que a gravidade está entre os três problemas críticos para a organização de tal tipo de viagem, além da radiação e aspetos psicossociológicos.

Sputnik: Em primeiro lugar, queria perguntar quando, a seu ver, se efetuará a primeira viagem a Marte e qual projeto, afinal das contas, será pioneiro neste sentido, já que há vários?

Thais Russomano: Bom, primeiro é preciso entender o que é que restringe a nossa viagem a Marte. Porque, na verdade, tecnicamente nós já estamos em Marte. Já se mandou sondas, já se mandou robôs que caminham lá até hoje. Então, já sabemos como chegar em Marte. O que restringe basicamente a chegada é basicamente a minha área de atividade que é a própria vida espacial.

Então, nós saímos da Terra, da sua gravidade, e vamos chegar na gravidade de Marte. Saímos de um G [constante de gravitação universal] e chegamos a um terço desse G. Ou seja, se eu peso 90 quilos na Terra, vou pesar 30 quilos em Marte. É uma coisa, e outra é que ainda vou passar microgravidade no espaço.

Além disso, a médica brasileira frisou que a radiação representa um desafio ainda maior à viagem humana ao espaço, especialmente no caso de um voo longo.

"A radiação é muito difícil de proteger. Tudo é muito pesado para se proteger. Se a gente usasse a água para proteger a radiação que vem do espaço, a espaçonave ficaria muito pesada. Talvez a melhor maneira de reduzir essa radiação, pelo menos diminuir a chance de ela afetar o ser humano, seria encurtar essa distância em termos de tempo de voo. Em vez de ter uma viagem de 6 meses, teremos uma missão de 3 semanas", partilhou.

Dra. Russomano adiantou que outro fator importantíssimo, que não se pode deixar à parte, tem a ver com o estado psicológico de um astronauta. Citando como exemplo uma espaçonave com 3-4 pessoas que vêm de "backgrounds" diferentes, deixam sua família e amigos e se distanciam cada vez mais da vida terrestre, a cientista frisa que esta situação influi muito na condição em que uma pessoa chega no planeta.

Mas qual seria a saída deste novelo de problemas que, à primeira vista, parece solucionável? A médica nos revelou essa "receita" ideal, mas realçou que ela necessita de um investimento muito grande.

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"Tecnicamente, seria ideal se a gente conseguisse colocar a gravidade da Terra na espaçonave. Se conseguisse gerar uma centrifugação que nos dê, pelo menos, algo muito parecido com a gravidade terrestre", disse.

Dra. Russomano explicou que tal processo, cujo conceito já existe na ciência, se chama de terraformação, ou seja, a transformação das condições climáticas e ambientais de um planeta ou satélite para igualá-las com as da Terra, e fazer com que o ser humano seja capaz de lá sobreviver. "Ou seja, pegar em uma espaçonave e transformá-la na Terra. Tentar mimetizar o máximo possível a nossa vida aqui dentro da espaçonave", explicou.

"Mas ainda é distante, eu acho, esse momento de chegar em Marte com sucesso. Chegar a Marte — a gente chega, mas pode chegar morto, né?", gracejou.

A doutora detalhou que, para chegar ao planeta sãs e salvas, as pessoas devem avaliar todos os riscos, que há muitos, de antemão, com o fim de prever os problemas já na superfície.

"Provavelmente, até dentro do projeto MARS ONE seria bom mandar primeiro os habitats humanos, construí-los em Marte para a chegada do ser humano. Eu acho uma ideia interessante. […] Senão, tu chega em uma nave e vai ficar dentro da nave, isso é complicado. A gente pode sair para fazer as atividades fora, mas a tua casa será só aquela nave", pormenorizou.

© Foto / Viktoria Tulisova, RUDN UniversityCientista brasileira, Thais Russomano, durante uma entrevista coletiva na Universidade Russa da Amizade dos Povos (RUDN University), em Moscou, em 26 de junho de 2017
Cientista brasileira, Thais Russomano, durante uma entrevista coletiva na Universidade Russa da Amizade dos Povos (RUDN University), em Moscou, em 26 de junho de 2017 - Sputnik Brasil
Cientista brasileira, Thais Russomano, durante uma entrevista coletiva na Universidade Russa da Amizade dos Povos (RUDN University), em Moscou, em 26 de junho de 2017

A doutora frisou: a própria viagem longa não é o maior problema, sendo que a atrofia de músculos, por exemplo, pode ser evitada através de um conjunto de exercícios adequados. Russomano fez lembrar, por exemplo, o recorde mundial do cosmonauta soviético Vladimir Poliakov, que passou no espaço 437 dias. Porém, uma viagem ao chamado "deep space" (espaço profundo) difere criticamente de uma estância na órbita e faz surgir desafios novos.

Como se resolvem esses problemas?

Falando de como se resolve um dilema tão complexo, a doutora revelou — tudo, como sempre, depende da questão de financiamento.

S: Resumindo o discutido, se pode dizer que a humanidade tem duas opções: chegar a Marte agora sem condições mínimas e sofrer enormes riscos, ou sacrificar o tempo e viajar depois, mas já com tudo preparado?

TR: Se tem um projeto complexo como é mandar uma pessoa para Marte, o que pode reduzir esse tempo [de preparativos] é o dinheiro que eu vou investir e o número de pessoas que eu vou botar juntas trabalhando. Essas duas coisas podem reduzir o tempo de um projeto, mesmo de um projeto tão complexo. Eu acho que uma boa analogia aconteceu com os americanos, quando decidiram levar o homem à Lua. Fazendo um paralelo, naquele tempo, nos anos sessenta, a Lua estava muito distante, talvez tão distante como hoje nós estejamos de Marte. Talvez um pouco menos, mas de qualquer maneira era um projeto extremamente complexo para a tecnologia e o conhecimento que se tinha. Mas é o que aconteceu — [foi investido] muito dinheiro que "comprou" o tempo menor. Então é uma cama de gato ainda, como se diz em português.

© Sputnik / Ekaterina NenakhovaDra. Thais Russomano, cientista brasileira e diretora da empresa InnovaSpace, e o estrategista da InnovaSpace, Dr. David Reggio, em Moscou, em 26 de junho de 2017
Dra. Thais Russomano, cientista brasileira e diretora da empresa InnovaSpace, e o estrategista da InnovaSpace, Dr. David Reggio, em Moscou, em 26 de junho de 2017 - Sputnik Brasil
Dra. Thais Russomano, cientista brasileira e diretora da empresa InnovaSpace, e o estrategista da InnovaSpace, Dr. David Reggio, em Moscou, em 26 de junho de 2017

S: Então, falamos da importância do financiamento. Sabe-se que o projeto MARS ONE, por exemplo, recusa as verbas governamentais por querer manter a independência e não se atar com a burocracia. Porém, muitos duvidam que o investimento privado seja suficiente para um projeto de tal escala. Como se resolve esse dilema?

TR: Dinheiro para projeto — esse é uma pergunta árdua. É dor de cabeça, né. […] Claro que os governos hoje em dia, eles detêm muito dinheiro, mas se sabe que a iniciativa privada também detém muito dinheiro e muitas vezes eles estão interconectados. Mas eu acho que o dinheiro é um problema, não só para o projeto de MARS ONE, mas para qualquer projeto marciano. […] Mas ainda faltam muitos conhecimentos, eu acho, de como levar uma pessoa com saúde até lá e permitir que ela fique.

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Ao falar da futura colonização de larga escala, a doutora frisou que este é um assunto muito distante que precisa profunda ponderação e pesquisa. Porém, não excluiu que em algum dia a primeira criança pudesse nascer no Planeta Vermelho, na Lua, ou até em pleno espaço.

"É difícil saber. Mas se tu tiveres um ambiente, homens e mulheres, com a ideia de ficar e permanecer… […] Se todo esse cenário se tornasse real um dia, em algum momento vai nascer um bebê na Lua, em Marte, ou no espaço mesmo. Outra questão é se nós realmente seremos capazes de nos reproduzir em outro ambiente gravitacional, esse é o primeiro ponto. Segundo ponto — como é que a criança que nascer vai lidar com o seu passado terrestre. […] Acho que há muitas coisas curiosas ainda, mas muito mais no campo da imaginação, não se tem uma resposta científica correta", revelou a doutora.

Espaço em cada casa?

Ultimamente, se tem registrado um interesse elevado pelos temas científicos até na área da cultura popular — basta relembrar os recentes filmes, tais como "Interstelar" ou "Perdido em Marte", cujo desempenho no cinema deixou impressionados até os próprios cineastas.

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A Dra. Russomano expressou que este é um bom sinal e uma boa oportunidade de fazer as pessoas comuns descobrirem um pouco mais sobre esferas que até agora lhe pareciam distantes.

"Tem uma mescla das duas coisas [ciência e ficção]. Claro que esses filmes são feitos para um grande público. E acho que eles têm uma função que é muito diferente da ciência espacial como ela é. Eu acho que têm uma função de motivar o grande público em relação à ciência espacial e de engajar o público nessas dificuldades ou nas situações com as quais os cientistas se deparam. Mas eu acho que não é o momento ali de ter uma ciência-ciência. Ficaria muito chato", brincou a cientista.

S: Que saibamos, no âmbito do projeto MARS ONE se planejava organizar uma espécie de reality show contando com a participação dos primeiros colonizadores. Como se faria do ponto de vista técnico e qual é a ideia principal — o ensino ou entretenimento?

TR: Acho que já terminou. A ideia inicial era transformar… A ideia tinha dois aspetos — a primeira era conseguir os representantes da Terra chegando ao outro planeta para que toda a humanidade tivesse um acesso a essa evolução do projeto. Mas aí, eu acho que foi muito criticada pela possibilidade de se tornar um "Big Brother" espacial e gerar mais polêmica ainda. Eu não sei se essa é a razão, mas eu entendo que tenha sido por isso.

Como é o perfil do colonizador marciano?

Ao falar da futura tripulação que, pela primeira vez na história humana, irá tentar permanecer e sobreviver na superfície do Planeta Vermelho, a cientista brasileira notou que seria preferível formar uma equipe diversificada, de homens e mulheres, sendo estes representantes de muitos países.

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A doutora frisou que, evidentemente, os colonizadores, de forma ideal, devem desfrutar uma saúde impecável, já que qualquer problema físico se agravaria com uma viagem tão complexa. Dra. Russomano traçou um exemplo bem modelar — se agora uma pessoa pegar, por exemplo, um avião de Moscou para o Brasil estando doente, vai chegar em uma condição muito pior. De mesma forma isto sucede no espaço, porém, de forma muito mais influente.

S: Segundo se comunicava, o processo de seleção para o projeto MARS ONE, em particular, se realizava entre os voluntários. Foi assim mesmo?

TR: Sim, no MARS ONE a ideia é mais a representação de pessoas que tenham um perfil de desbravadores e possam ser treinadas em outras áreas. A concepção é de que é esse perfil que vai te fazer querer ir a Marte, chegar em Marte, viver em Marte.

S: Em sua opinião, quais são os objetivos perseguidos por estes voluntários? É interesse pessoal, busca de popularidade ou adrenalina, ou, talvez, altruísmo, quer dizer, o empenho no futuro das próximas gerações?

TR: Eu acho que tudo em conjunto. Eu não participei em nenhum momento desse processo de seleção, não sabia dizer exatamente o que é que as pessoas pensam, mas acho que é comunhão, como tudo na vida. […] Eles, quem desenhou o projeto MARS ONE, entendem que esse traço de perfil da pessoa de ser um desbravador, de ser uma pessoa que trabalha bem com risco, [dizendo] "vou conseguir, vou trabalhar", coisas de determinação, perseverança, todas as características psicossociais são mais importantes. Claro que tem de ser saudável, tem que ser isso e aquilo, mas o background científico na concepção que eles estipularam teria menos importância.

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S: Talvez essa pergunta seja um pouco provocatória. Mas é frequente que a gente ouve — a humanidade investe tanto dinheiro no desbravamento do espaço, de Marte em particular, mas tem uma atitude terrível para com seu próprio planeta. Diz-se que estamos dispostos a colonizar outro planeta sem sequer poder cuidar do nosso. A senhora partilha esta opinião?

TR: Não, eu acho que a colonização de Marte, por exemplo, ou mesmo da Lua, não está ligada ao fato de que a gente não cuida bem da Terra, sabe. Acho que é mais a necessidade de vencer essa barreira final, essa "final frontier" e realmente se expandir, o que faz parte da natureza humana.

Durante sua estadia breve em Moscou, a destacada especialista Thais Russomano também não deixou escapar a oportunidade de interagir com os pesquisadores russos, visando estreitar os laços no campo de investigação científica espacial e marciana em particular. O projeto universitário 5-100, do qual a Universidade Russa da Amizade dos Povos (RUDN University) faz parte, se ocupou de organizar conferências científicas e palestras em Moscou para efetuar uma troca de experiências. Já hoje de noite, a Dra. Russomano vai viajar para a cidade russa de Novosibirsk, onde buscará apoio de várias iniciativas que chefia e discutirá os problemas mais críticos de desbravamento espacial.

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