Opinião: “Ucrânia faz lei para ‘criar’ a sua própria História”

“Ucrânia faz lei para ‘criar’ a sua própria História”
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A decisão do governo da Ucrânia de destruir monumentos e mudar nomes de ruas, tentando apagar a “herança soviética”, é considerada “uma tentativa de sepultar a História do país”. O Professor Ângelo Segrillo, em entrevista exclusiva à Sputnik Brasil, acrescenta: “Talvez seja o caso de dizer que o país quer ‘criar’ a sua própria História.”

No último final de semana, entrou em vigor uma lei na Ucrânia determinando a proibição de uso de símbolos do comunismo. Infratores desta lei poderão ser condenados a até dez anos de prisão. Ruas, praças e avenidas que têm nomes russos estão sendo rebatizadas e ganhando versões próprias em idioma ucraniano. Também estão sendo removidas imagens que retratam os líderes da União Soviética e da Revolução Comunista de 1917.

A operação é vista por um jornalista ucraniano, Yuri Dorkot, como uma “tentativa de sepultar a História do país”. Mas, para Ângelo Segrillo, especialista em Rússia e Professor de História da Ásia da USP – Universidade de São Paulo, a iniciativa do Presidente Pyotr Poroshenko vai além disso: “Sepultar a História talvez seja uma expressão radical demais. Talvez seja o caso de dizer que o país está querendo ‘criar’ a sua própria História.”

 

A seguir, a entrevista com o Professor Segrillo.

Sputnik: Segundo o jornalista Yuri Dorkot, a Ucrânia quer sepultar a sua História. É possível sepultar a História?

Ângelo Segrillo: Sepultar a História, assim de uma maneira em bloco, é praticamente impossível. O que eles querem fazer é apagar uma parte da sua História, principalmente aquela que é a questão da União Soviética, porque aí há uma ligação umbilical com a Rússia, dando a impressão de que a Ucrânia esteve ocupada todo aquele tempo. Tentar dizer que a Ucrânia estaria mais ligada ao Ocidente e que aquele período na História foi uma época, na verdade, de ocupação. O que é bastante problemático, porque na verdade não foi só com a União Soviética que a Ucrânia esteve ligada à Rússia. A ligação ucraniana com a Rússia é umbilical. Falando um pouco de História, um pouco mais atrás: a origem da civilização russa atual não está na Rússia atual. Na verdade, está na Ucrânia – o chamado Estado Kievano que existiu do século IX ao XII, em que não havia ainda separação entre russos, ucranianos e bielorrussos – era tudo um povo só, os eslavos orientais. Então, ucranianos, russos e bielorrussos têm essa origem comum, era um povo só nos séculos IX ao XII. Depois, nos séculos XIII ao XV houve dois anos de domínio mongol sobre a Rússia, e aí começou a haver essa diferenciação entre aqueles três povos, e a Ucrânia depois nunca conseguiu se tornar independente de novo, porque ela ficou dividida – parte com o Império Russo, parte com o Império Otomano, parte com o Império Austríaco. Na prática, fora algumas experiências fugazes de tentativa de rebelião, ela só se tornou independente no final de 1991, com o final da União Soviética. É muito difícil tentar reescrever uma História da Ucrânia que não seja de alguma maneira ligada à Rússia. Tentar extirpar este lado é praticamente impossível.

S: O decreto do Presidente Pyotr Poroshenko determina que testemunhos e imagens do passado em comum com a Rússia ou com a União Soviética são, a partir de agora, permitidos apenas em museus, mas com a ressalva do “caráter criminoso” daquele regime.

AS: Esse exemplo mostra o quanto é complicada essa questão, Isso pode infringir a questão das liberdades de opinião, de expressão. Então você só pode ter alguma coisa que relembre o passado dentro de um museu, e não fora. E por que poderia ter num museu? Porque no museu é um estudo científico. Isso está dizendo que o que existe lá fora é não científico, é uma coisa artificial. Esse tipo de lei é problemático em vários aspectos, inclusive este, de que pode infringir o direito de expressão. 

S: Historicamente, há registro de outros países que tenham tido essa iniciativa de tentar uma ruptura com o seu passado?

AS: É comum, quando há uma mudança radical de regime. Em vários países que fizeram parte do campo socialista, comunista, do Leste Europeu antigo, houve leis mais ou menos nesse sentido. Em muitos daqueles países algumas dessas legislações foram iniciadas, algumas até severas, mas depois não conseguiram ser implementadas na prática. Talvez isso aconteça na Ucrânia também.


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